Existe o fracasso da educação pública, e existem causas.

O fracasso da educação pública é algo assimilado pela opinião pública brasileira. É como falar sobre a corrupção na política. Admite-se, mas não se enxergam causas nem soluções. É mais um mal da sociedade brasileira que, grosso modo, nem adiantaria trazer para a discussão. Poderia ser mais um tema para humorísticos e discursos de palanque, mas o brasileiro não quer se envolver no problema. Rende reportagens na televisão, denúncias na imprensa, mas não é algo que tire o sono daquele que frequenta uma escola ou manda seu filho passar horas diárias em uma delas. Nada além de mais uma fraqueza do país.
Existe uma vasta bibliografia sobre o fracasso da escola pública. Mas que é feita para educadores preocupados com currículos e metodologias. Na verdade, é um diálogo que se efetiva apenas no meio acadêmico. E que acaba influenciando decisões políticas. Estatísticas, avaliações institucionais. No entanto, quem trabalha ou trabalhou na escola pública e, além disso, estudou nela, sabe que as causas de seu fracasso se evidenciam nas ações cotidianas ali praticadas. Há inúmeros culpados. Diretores, professores, alunos, pais, pedagogos, burocratas.
Existe uma máscara encobrindo as causas desse fracasso. E que encobre soluções que ultrapassem os âmbitos curricular e metodológico, com todos os recursos físicos que estes envolvem. A máscara cria falsos mitos para encobrir os verdadeiros culpados. Ela erige falsos mártires. Transforma em vítimas aqueles que são imediatamente culpados pelas ações que levam ao fracasso. E que insistem nessas ações.
Não há dúvida: as causas são muitas. Vão desde a aula mal dada à aula nunca dada. Entre uma e outra, a máscara é construída por todos que estão envolvidos no processo educacional. E atrás dela existe um mundo inacreditável, que a imprensa não denuncia, que o acadêmico não coloca em suas pesquisas, que a autoridade finge não perceber, e que existe porque inúmeras pessoas ganham com esse fracasso. E são ganhos de inúmeros tipos.
Por que não falar sobre isso? Mas falar do ponto de vista de alguém que presenciou cada uma das causas desse fracasso aqui apontadas. Desde a vida como aluno até o trabalho como professor e pesquisador. Alguém que estranhou a probição que recai sobre essa discussão. E que passou a ver a própria discussão oficial sobre o assunto como uma máscara. Dizer que a escola ganhou um computador ou que não o possui é só uma forma de não se dizer que o instrumento vai ser usado para burlar o processo pedagógico. Mas, quem o disser estará fora da dança de quadrilha que é o debate sobre educação, não formará um trenzinho nem girará no círculo daqueles que se envolvem no assunto.
É preciso ter a coragem de dizer: na educação pública acontece isso, acontece aquilo, e tudo isso gera o inevitável: o fracasso. Que nenhum dos programas oficiais voltados para a melhoria do ensino público vai conseguir vencer. Tal como a escola pública acontece hoje, ela só poderá acabar em falência completa.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Os recursos contra reprovação: reparação de injustiças?

             A maravilha que ilustra esta página é uma cópia escaneada de uma ata feita no Colégio Estadual Padre Gualter Farias Negrão, de Cruzmaltina, interior do Paraná. 
              Trata-se uma situação corriqueira a do aluno que espera o final do ano para entrar com um recurso após a sua reprovação. A ata se refere a uma primeira convocação de conselho de classe, para rever tal reprovação. O conselho a manteve. Mas a história seria estendida até o mês de março do ano seguinte. E terminaria com uma inevitável aprovação do aluno. 
            Não é a primeira situação de recurso que vejo acontecer. E, normalmente, ela vem como um ultimato ao conselho de classe, e nunca como uma possibilidade de deliberação. É comum que o núcleo insinue nas comunicações sobre recursos que, se os professores mantiverem a reprovação, serão convocados novamente para reuniões. Em março de 2012, um aluno de sétimo ano da Escola Estadual Ângelo Trevisan, de Curitiba, deixou claro a uma pedagoga, que o interpelava pelo fato de não trazer o material escolar às aulas, que seu pai lhe dissera que bastava um recurso e ele seria aprovado, e que realizar as atividades pedidas não era sua intenção. (Vou acrescentar aqui, posteriormente, a cópia da ocorrência feita pela diretora da escola.) Mas a resposta dada pela família foi uma ratificação das palavras do aluno. 
            O que especifica a situação ocorrida no Colégio Padre Gualter Farias Negrão é a vinculação da indústria de recursos a interesses nitidamente desligados da educação. A ata registra providências tomadas por professores, ao longo do ano letivo, como a convocação de responsáveis pelo aluno. Nota-se que nenhuma medida foi tomada, nem pela família nem pela área pedagógica. Nada que modificasse a atitude do aluno ou diagnosticasse a necessidade de medidas diferenciadas em relação a ele. A diretora chega a mostrar indignação por não ter sido informada a respeito da situação.
           No entanto, esse jogo de máscaras ficou evidente com a reprovação do aluno e o já esperado recurso, diversas vezes propalado por aquele, quando matava aulas ou permanecia alheio às atividades pedidas. Era necessário aos recorrentes sumir com as provas contrárias ao aluno. Por isso, diretora e avó combinaram de dizer que o caderno fora queimado pelo professor. O fato levou o professor a fazer um boletim de ocorrência na polícia. Evidentemente, a avó não encontrou apoio financeiro para se defender. Procurou pessoas ligadas ao professor e levou-o ao núcleo de educação. Lá, fez um longo relato, devidamente registrado por escrito e na presença de testemunhas. Disse que fora procurada, fazia algum tempo, e que recebera a proposta de ter seu neto aprovado por recurso, em troca dos votos da família nos candidatos que a procuraram. Por isso, nada a incomodou: nenhum pedido de comparecimento à escola ou notas muito baixas. Deixou claro que a diretora estava envolvida na situação. Como era de se prever, usou as condições financeiras da família como um pretexto para ter aceitado o acordo. A avó retirou o pedido de recurso e assinou um documento em que relatava o ocorrido. Disse que ainda esperava poder contar a história na secretaria de educação. (O núcleo tem negado, mesmo através da Lei 12.527, o acesso a esse documento. Nega que ele exista, mesmo para quem o assinou.)
          Apesar da desistência do recurso, a chefe do núcleo insistiu em aprovar o aluno. Em março, convocou um conselho, em que deixava claro que, enquanto a reprovação permanecesse, outros ainda seriam convocados. Essa mesma pessoa, posteriormente, enviaria às escolas um documento, lido nos conselhos de classe, em que ela dispensava de comparecer às aulas os professores que fossem à carreta de seu candidato. Não foi surpresa ver a avó do aluno revigorada pelas novas promessas que deve ter recebido, após a retirada da queixa na justiça. 
         Tais fatos fazem pensar na indústria de recursos como algo que ultrapassa a simples esfera pedagógica. A ideia do recurso como defesa para o aluno injustiçado parece não corresponder aos que, de fato, ocorrem. Já soube de aluno disléxico reprovado por quatro anos seguidos, sem que a escola sequer tivesse disponibilizado um diagnóstico. Diante desses casos, é comum que se veja o professor como autoridade máxima e o conselho como uma instância suficiente para deliberar. Mas não quando o aluno está evidentemente motivado a não estudar.
              A postura moral desse aluno e das demais pessoas envolvidas em acordos escusos fazem com que fatos como este não possam ficar em surdina, diante das garrafas térmicas dos núcleos e dos diretores.


sábado, 9 de março de 2013

A circularidade da ignorância: despreparo ou opção?


Escrevo agora para acrescentar uma espécie de resposta ao artigo "Trava na educação", publicado por Hélio Schwarstman na Folha de São Paulo, no dia 5 de março, a respeito de reportagem do próprio jornal acerca da contratação, em regime temporário, de professores que não acertaram nem a metade das questões em teste seletivo.
Primeiramente, a noção de temporário, que regulamenta essas contratações, refere-se à possibilidade de contrato anual, ou por curto período de tempo. Os professores que constroem suas carreiras dentro desse regime não são temporários. Os professores temporários que me deram aulas na década de 80 continuam atuando como tal, muitas vezes tão erradicados em uma escola que até os demais não sabem dizer se o colega foi efetivado. Quando reprovam em algum concurso, é normal que digam que isso não os abala. Mas basta uma medida, como a que o governo do estado do Paraná tomou no final de 2012, mudando a quantidade de aulas de certas disciplinas, para que esses professores entrem em estado de greve, anunciada para a próxima semana. O enraizamento dos temporários reprovados é algo tão orgânico dentro da rede pública que os efetivos pensam mais nas aulas desses colegas que na importância, para o ensino, de se aumentar a carga horária de matemática, em detrimento de educação física, ou no comodismo de alguns quererem trabalhar em um único estabelecimento. Como sempre, olimpíada de matemática é “encheção de saco”, mas um torneio de futebol de salão a 100 quilômetros da escola faz a comunidade escolar parar, encher ônibus, porque ainda é isso, sobretudo nas escolas do interior, que garante a reeleição de diretores.
O temporário tem a imensa vantagem de escolher turmas e escolas onde trabalhar. De poder desistir caso um aluno comece a dar problemas sérios. E, como faltam professores efetivos, eles sabem que suas aulas estarão garantidas. Para que estudar? Para que voltar a ganhar o que um professor efetivo recebe no começo da carreira? Da mesma forma, para que um engajamento como profissional da educação? Caso não haja mais aulas no interior, corre-se para a capital.
As questões que Schwarstman suscita funcionam como uma relação das causas que tornam esse profissional temporário um alívio para rede de ensino que, caso ele não aceite as turmas, teria que deixar alunos sem aula. Era assim quando eu estudava: semanas sem professores, e quem aceitava as aulas normalmente não era formado na disciplina. Era comum ter uma aula e depois saber que o professor se enganara de turma. Hoje, o governo até distribui essas aulas antes do início do ano letivo. Mas as questões de Schwarstman acabam em estabelecer uma circularidade entre a educação que esse profissional recebeu, e que não o capacita a aceitar metade das questões em um teste seletivo, e a má educação que ele oferece, com sua eterna ignorância em relação à própria proposta curricular, com sua repulsa em aceitar conceitos científicos de metodologia e avaliação, mas, sobretudo, porque é notória a limitação desses profissionais em relação às suas disciplinas de atuação. Lembro os cartazes feitos pelos alunos de um professor temporário, representando os orixás: todos tinham as palavras “santo” ou “santa” antes do nome, evidenciando que o aluno não compreendera do que o professor estivera falando, e tornou essa incompreensão motivo de desinformação também para alunos de outros professores, ao colocá-los expostos no refeitório. Nenhum trabalho de acompanhamento da elaboração da atividade, nenhum trabalho de correção, nem de reorientação.
Encontrei entre coisas guardadas a série de atividades que tenho disposto aqui em seguida, escaneadas. E elas são uma prova irrefutável do despreparo de uma professora com contrato temporário. Coloca em dúvida também os meios pelos quais essa professora chegou a assumir essas aulas. Afinal, o que fica evidente é um caso de proteção, ou indicação, de uma professora porque uma colega resolveu protegê-la, ou como troca de favores, porque a mesma é parente de alunos da escola. Essa mesma situação do parente que assume aulas me foi relatada, no ano passado, por uma professora do colégio em que as atividades copiadas foram feitas. Ela me relata que, tendo assumido as aulas que eram de uma professora temporária, sofreu as provocações de aluna parente da afastada, que incitava os alunos a não realizarem atividades ou a ficar para fora da sala, exigindo que a professora efetiva e concursada largasse suas aulas.
Percebe-se, nas atividades aqui copiadas, um total desconhecimento de qualquer noção de texto por parte da professora. Trata-se, até onde sei, de uma dessas professoras que ministram aulas na rede municipal, e que veem a rede estadual como um oásis de satisfação. A compreensão que a professora demonstra acerca de metodologia e de avaliação não vai além daquilo que ela deve ter estudado em um curso de magistério. É uma compreensão esfacelada do conceito linguístico de texto e dos elementos que compõem a textualidade. É fácil perceber que, durante as aulas que tratavam do assunto, na faculdade, a professora já sonhava com as benesses da contratação que não exige domínio sobre a disciplina. Certamente, ela apenas trouxe da rede municipal uma série de incompreensões e uma ignorância crassa de conceitos científicos. Mas é o que ela deve saber fazer.
Ela não sabe o que é texto. Não conhece a noção que fundamenta todo o ensino de língua portuguesa, que é a de gênero textual. Não sabe que todo texto está voltado para um leitor e que deve possuir uma intencionalidade, como fenômeno social. Aqui, tem-se de volta o fenômeno da professora que pede que o aluno escreva o que quiser sobre qualquer assunto. Não há um gênero, não há uma intenção, nem uma estrutura. A linguagem dos alunos oscila entre um discurso didático, de enciclopédia, um discurso publicitário, que lembra as propagandas de rádio e seus chavões, e um diletantismo típico do discurso de professoras primárias, que coloca a sua moralidade até mesmo no que era para ser um verbete de enciclopédia.
Repare-se o absurdo do aluno que escreve sobre a cidade de Faxinal, e não sabe sobre o que escreve; há ali um discurso de aluno de segundo ano primário em um aluno de ensino médio. O acúmulo de frases que ele deve ter escutado no rádio, em comícios, e que fazem parte de uma abordagem professoral, de professora primária, paga pela prefeitura e de “rabo preso” com seus pagadores, evidencia  a mão da professora sobre o discurso do aluno. O mesmo pode ser constatado no que uma aluna escreve sobre o natal. Faz pensar em um discurso de propaganda divulgada por autofalante, que a professora parece ratificar, vendo na mistura de linguagem didática, publicitária e religiosa uma prova de criatividade e de riqueza temática.  A frase que inicia o texto sobre o natal tem uma série de correções desnecessárias, afinal, a ausência do verbo “é” pode ser vista apenas como opção. Logo em seguida, a professora corrige o erro no uso do verbo comemorar com uma anotação mais errada ainda, pois torna uma locução adverbial um sujeito. O fato de a aluna começar três parágrafos com “todas”, em afirmações que são mentirosas, nem sequer mereceu da professora uma anotaçãozinha. Frases assim, categóricas e que fazem generalizações, são típicas do discurso de inúmeras professoras primárias, e o aluno acaba terminando o ensino médio carregando essas marcas. A professora coloca maiúsculas nos nomes de algumas cachoeiras, mas não em todas. Por quê? Preferência pessoal? A presença do adjetivo antes do substantivo é uma marca da linguagem professoral. Aqui, o aluno parece ter sofrido uma bela regressão no tempo, que o fez voltar a ser o menino de oito anos com sua dicção específica. Ele não sabe com certeza em que sílaba vai o acento do nome do seu estado. O aluno que escreve sobre esportes está, evidentemente, pensando apenas nas suas aulas de futebol de salão na quadra do próprio colégio. Ele chega a considerar xadrez como esporte. E a insuportável presença da primeira pessoa, outra marca do discurso professoral, que deve ter sido visto como qualidade.
Observa-se que a professora é generosa na hora de atribuir notas a textos que, evidentemente, não o são, e que jamais poderiam ser aceitos de alunos de ensino médio.
A possibilidade de escrever de qualquer jeito, pois a professora não está pedindo ao aluno que reveja os erros que assinalou com caneta vermelha, deixa este livre para não se preocupar nem com regras de gênero textual, nem com ortografia, concordância ou pontuação. O que a professora assinala são erros de ortografia, mas ela não está nem um pouco preocupada em ensinar a produzir textos. Chega a ser risível alguns casos de correções apenas para mostrar que ela é atenciosa, quando assinala que o aluno deve introduzir um parágrafo, sem ao menos ter esclarecido o aluno acerca da necessidade de definir seu tema, antes de falar sobre seus aspectos secundários. O modo como ela assinala os erros de ortografia deixa claro que o aluno não terá que relembrar princípios básicos de escrita, como a existência de plurais. Ela anota, e dá a nota. Nenhum processo. Nenhum planejamento ou revisão de texto. Ela não deve ter lido sequer o que as diretrizes curriculares de português do Paraná falam sobre as etapas de produção de um texto. E que seja texto.
Mas é também trágico perceber a falta de domínio da professora sobre a própria língua. Ela não domina noções básicas de concordância, como evidencia em “No terceiro e quarto verso” ou em “A palavra destacada nas frases a seguir foram empregadas com o mesmo sentido do texto”. O mesmo erro que força a aluna a cometer, ao colocar um verbo sendo regido por um adjunto adverbial, é cometido por ela em “No verso: ‘Todas as coisas de que falo são de carne/ como o verão e o salário’, possui uma metáfora.” Aqui, ela demonstra possuir a mesma noção sobre o uso do verbo “ter”, em orações sem sujeito, que um aluno de quinto ano. Sua pontuação é confusa. Para que os dois pontos? Em “A palavra ‘coisa’ não tem uma definição específica, é usada de foram (sic) genérica”, apenas um filho da professora, após uma longa conversa de mãe para filho, entenderia o que ela quis dizer com “definição específica”, sem se levar em conta que, no texto, a palavra usada é “coisas”. A falta de critério, a pressa em digitar, nem sequer é compensada por uma revisão do que foi escrito. Quando escreve que “A palavra ‘coisa’ é escrita com ‘s’, porque depois de ditongo deve-se escrever ‘s’”, ele não explica por que “coice” ou “peixe” não são escritas com “s”. Esperar que ela esclareça ao aluno que se trata do som de “z” já seria esperar demais. A questão está lá, ela cumpriu sua obrigação de fazer o teste e dar a nota. Esperar mais de tal professora seria esperar demais. Como diria o discurso que representa o professor, ela não ganha para isso.
Nenhum professor explicou a essa professora a diferença entre preposição e artigo. Nem ela percebe sozinha. Por isso, ela anula a hesitação do aluno, que colocou “E” e depois “C” diante da afirmação de que “O artigo ‘a’ em “a prestar’ (2º quadrinho) é um adjunto adnominal”. Ela não sabe que esse “a” é preposição e que preposição não é adjunto adnominal. Quem trabalha com alunos de sexto ano sabe que o aluno acha que todo “a” é artigo. A professora confirma a regra, mas ela já fez faculdade e, com certeza, especialização. O fato de o aluno ainda hesitar e de ela ter certeza diante de uma afirmação absurda podem significar que o aluno possua mais noções de língua portuguesa que a professora. Esta usa a palavra “termo” de forma abusiva: “o termo ‘nas notícias’”; “o termo ‘para cargo público’”; “o termo ‘descolar algum’”; “o termo ‘a ele’” e evidencia não diferenciar singular de plural, como quando diz “no verso” e reproduz dois versos. Algo tão primário que faz pensar em limitações cognitivas, e não apenas em problemas de formação. Nenhuma faculdade ensinará sobre singular e plural e nenhum teste seletivo perguntará essa diferença. Se perguntasse, a taxa de acertos de alguns professores ficaria menor.
As atitudes de improviso explícito, de falta de um foco norteador, de a professora pinçar conceitos de forma quase aleatória para formular seu teste, deixam claro que a postura da professora não diz respeito à formação de habilidades. Ela cobra para dar uma nota. As notas não fazem sentido, quando se pensa na série para a qual a atividade se destina. E o que resulta é o aluno que não está passando por um processo de aprendizagem, submetido aos critérios de uma professora que também não passou por um processo assim. Schwarstman tem razão, o círculo existe. E antes que alguém possa pensar que o exemplo isolado desta professora do Colégio Estadual Olavo Bilac, da cidade de Faxinal, no Paraná, não ilustra a condição dos professores temporários reprovados em testes seletivos, é preciso que se diga que o exemplo foi extraído dentre inúmeros que poderiam figurar para se falar do problema. Alguns, até já publiquei. Outros, posso encontrar aos montes se interpelar qualquer aluno de escola pública.
Trata-se apenas de um exemplo. Em São Paulo, pode até ser diferente. Afinal, o Paraná já não faz testes seletivos para contratação de professores temporários faz tempo. A preocupação de que não saber metade das respostas possa interferir na hora de escolher aulas não existe para os professores temporários daqui. Por isso, eles podem até planejar suas greves para poderem permanecer nas escolas em que atuam há décadas. Daqui a vinte anos, a professora aqui citada estará fazendo as mesmas atividades. E não será apenas porque não a prepararam. Será uma opção profissional porque, afinal de contas, ela se considerará uma vitoriosa em sua carreira.











domingo, 3 de março de 2013

Diário de Classe: menos sério do que parece


A garota que criou a página “Diário de Classe” está participando do programa “Altas Horas”.

Percebe-se que ela está nervosa. Suas mãos tremem ou ela as esconde entre as pernas. As respostas dela apenas repetem o que já disse em outros programas, em reportagens de todo tipo. Mostra os defeitos da sua escola. De uma escola que não parece ser das melhores, mas que certamente não está em uma região miserável. Improvisos nas instalações, como fios expostos, existem em todas as escolas públicas. Esgotos que vazam, vasos sanitários rachados, portas sem trinco, tudo que pode ser visto nelas há décadas. Existe culpa da escola, como na merenda que não contempla as necessidades alimentares. Merenda, até onde me lembro, é algo feito apenas para enganar a fome dos alunos; uma preocupação com valores alimentares já seria uma mudança no ensino público. Nesse nível, ela já estaria lutando por uma causa nova no ensino. A troca das sopas e dos panelões de fubá com salsicha por verduras e frutas seria algo para o décimo ou vigésimo Plano Nacional de Educação que o governo implantasse. Na escola em que estudei da primeira à sexta série, a merenda era uma sopa branca e os alunos a tomavam em canecas de plástico que eles mesmos levavam, sem talheres. Só para os alunos até a quarta série; para os mais velhos, não havia merenda. Mas as paredes manchadas e os vidros quebrados eram como hoje. A maioria depredada pelos alunos.

A garota está envolvida seriamente com esses detalhes. E eles ferem a imagem da direção da escola. Assim como, para quem já estudou em escola pública, constata-se o exagero dela ao querer ver no aluno a vítima quando o assunto é estrutura, material, merenda. Grande parte dessa miséria é culpa do aluno. O governo não dá tudo de que se precisa. Aquilo que dá, corre sérios riscos de se tornar tempo perdido. O aluno reclama do calor, então a escola faz uma festa e compra um ventilador que, duas semanas depois, está com as hélices retorcidas ou foi arrancado. Um exemplo são as televisões que toda sala de aula ganhou na década passada no Paraná. Quantas hoje não têm as teclas arrancadas e as entradas USB coladas com Super Bonder? Os alunos de um colégio onde trabalhei arrancavam equipamentos das sala de informática e jogavam pela janela, para depois recolherem lá fora. O diretor contava isso com aquele ar de “eles são danados, mas deixa assim.”

A aluna falava, no ano passado, de professores que ela achava faltosos ou relapsos. Ela parou. Deve ter sofrido muita intimidação. Deve ter visto muitas caras feias. E acabou ficando apenas nas fechaduras e nos bebedouros. Aquilo que o governo pode instalar, consertar, melhorar. Mas ela é nova demais para entender de ensino. Por isso, chovem os chavões sobre a qualidade que é apenas ritual: o professor que chama o aluno de querido e dá aulas divertidas, tudo para fazer com ele pinte bandeirinhas ou recite a letra do hino da escola. Nada do que se possa chamar habilidade, conhecimento, competência. Ela fala sobre a irmã que estuda em escola particular e que serviu como paradigma para reclamar da sua. Uma pitada de inveja e a vontade de poder dizer para a irmã que na dela também tem frango de merenda. Coisas de adolescentes. Até porque a garota não depende de merenda. Quando ela diz que, se os alunos brasileiros se unissem, a educação melhoraria, parece não saber que a má qualidade do ensino corresponde exatamente ao nível de esforço que o aluno quer despender com sua educação. Essa lei de ação e reação mantém o sistema em equilíbrio: o aluno não se esforça e o professor diz que o pouco é o limite daquele.

De fato, é surreal que uma garota denunciando o estado de sua escola provoque tanto alarde. As pessoas deveriam saber que as escolas são assim. Por isso, as ameaças de morte que recebeu parecem uma irracionalidade. Quem ignoraria que as escolas públicas têm materiais quebrados, sujeira, merenda ruim, fios emendados? Se ela estivesse falando de descumprimento de horário, de aulas não dadas, de um sistema de avaliação contra as leis, de um ensino baseado no achismo de pais e professores, de compra e venda de notas, seria uma surpresa, e alguém poderia dizer que a pegaria na rua.

O caso se parece com um stand-up que todos já viram, mas que provoca o riso da plateia apenas porque ela está ali para isso.

sábado, 2 de março de 2013

Greve: motivos e motivações



 
              Existe um movimento de greve no estado do Paraná. Propalado desde o final de 2012, esse estado de alerta serve para dar ao governo o tempo de atender à pauta de reivindicações.

Evidentemente, as greves dos professores universitários ocorridas no ano passado impulsionaram o movimento. Fizeram com que os profissionais da educação, há anos recitando como uma religião a cartilha do governo do estado, tomassem o gosto pela ideia. Afinal, a imagem do professor como um engajado em causas sociais (ele que ajudou durante décadas a implantação dos ideais da ditadura e repete até hoje nas salas de professores que aquela época era melhor) é o que faz com que a escola pública tenha deixado de lado o debate sobre as ideologias para acatar e propalar apenas uma (aquela representada por um professor de história de uma escola do interior paranaense que, depois de levar uma turma a um acampamento de sem-terras, não aceitou que os alunos tivessem feito os seus relatórios contestando a causa ali defendida, e conseguiu com a direção do colégio que os mesmos fossem excluídos de todas as excursões até que terminassem o ensino médio).

O governo foi tímido ao tentar uma mudança, pequena, tateante, no estado de coisas construído ao longo de alguns anos. Tal como, na década de noventa, qualquer povoado de mil habitantes conseguiu sua emancipação política, até que os de duzentos também começaram a pedi-la, as escolas foram sendo objeto do empreguismo que sempre representou a instituição pública. Uma das formas de fazê-lo foi a eliminação de testes seletivos para a contratação de professores com cargos temporários. Há tantos professores dando aula que apenas têm a matrícula de ingresso na faculdade, que seria um crime para os locais onde a população depende de cargos públicos acabar com o bem de todos e felicidade geral da nação. Por isso, bastava se pensar em um conteúdo como importante para a formação do aluno, e logo ele estaria elevado à categoria de disciplina obrigatória. É o caso da filosofia, disciplina confundida com autoajuda e catequese. E da sociologia, que era uma espécie de discurso de abertura de campanha da fraternidade. As pessoas formadas nessas áreas todas bem longe do ensino público. O mesmo acontecia com a suspeita de inserção de música na grade curricular. Presume-se que a existência de uma disciplina chamada arte já evidencia a inclusão da música como conteúdo. Ledo engano. Outra forma de criação de cargos é representada pelos projetos de extensão, que servem como um pretexto para que o professor contratado temporariamente tenha que voltar no ano seguinte. Projetos às vezes criados às pressas, apenas para esse fim.

A retirada de algumas dessas disciplinas da grade curricular era apenas uma questão de tempo. As escolas vêm tentando melhorar seus índices de aproveitamento, mas era comum que disciplinas básicas, como português, matemática e história, perdessem carga horária. É evidente que conhecimentos essenciais à formação humana sejam observados pela escola. Filosofia, sociologia, cultura brasileira, tantas outras, até mesmo conhecimentos corriqueiros, como educação para o trânsito, interessam à escola. Mas é óbvio que não se pode incluir tudo isso no ensino de meio período que a escola encolhe com festinhas, gincanas, ou a troco de nada. Se a escola conseguisse despertar o interesse pelas ciências ou pelas artes, já estaria assegurado que pelo menos uma minoria as buscaria fora da vida escolar.

O mesmo ocorre em relação ao ensino de educação física. Virou moda nos anos noventa a vontade de formar atletas dentro das quadras improvisadas das escolas públicas. O calendário escolar se encheu de eventos municipais, regionais, estaduais, que demandam treinos, viagens, cessão do espaço escolar para hospedagem. Algo que, na prática, resulta em um processo de exclusão de alunos que não fizeram do esporte sua única preocupação. As escolas passam o ano comprando medalhas para aqueles dez ou vinte alunos que adoram esportes, e ignoram os que se destacam nas outras áreas, sobretudo arte e ciência. E os projetos de extensão, na sua maioria, também são complementos das aulas de educação física. Três aulas semanais de educação física, quando arte dispunha de duas, ou duas aulas no ensino médio, quando português dispunha de três, são um excesso.

Quando o governo fez alterações na grade curricular, já ao final de 2012, o estado de coisas ficou inseguro. Afinal, os professores que ministram disciplinas com duas aulas semanais precisam de escolas grandes, ou têm que percorrer estabelecimentos em busca de aulas que completem sua carga horária. Natural, ou a grade curricular, com vinte-e-cinco aulas semanais, teria que ser formada por umas cinco disciplinas. É matemático. Mas o aumento de aulas da disciplina, antes ocorrido, levou à contratação de professores. Se não houvesse tantos professores com contratos temporários, haveria motivos para uma catástrofe. A existência dos mesmos prova que existem aulas disponíveis para os concursados. Não querer se deslocar de em estabelecimento a outro já é um problema matemático. Não se pode submeter a grade curricular ao fato de um profissional querer essa comodidade. Da mesma forma, é necessário que se faça uma redistribuição de cargos para esses profissionais, de forma que a mudança não impossibilite o exercício da função. A mudança não foi planejada pelo governo. E essa irresponsabilidade pode ser motivo para uma greve. Mas querer o estado de coisas tal como estava, apenas para que os professores não precisem trabalhar em mais de um estabelecimento, é algo ilógico.

 É muito provável que o problema seja resolvido colocando-se professores de educação física para dar aulas de português ou matemática, disciplinas que ganharam aulas. Seria algo já feito, ratificado por outros governos. E a lógica do empreguismo público diria: “Se eles não querem que a qualidade do ensino piore graças a esses professores fora das suas áreas, que criem aulas para eles e contratem mais professores temporários formados nas suas devidas áreas.” A mesma regra condicional que justifica as greves. O aluno deve perder.

As questões salariais e de implementação de hora-atividade representam uma luta da classe docente. O governo cria leis que levam anos para serem implementadas. Ou não obedece a direitos. Em contrapartida, o professor ignora as propostas curriculares oficiais e a carga horária legal. Essa relação de “se isso, então aquilo” mantém a categoria em uma condição de desvalorização, e o ensino em um nível de puro improviso.

A categoria estava precisando de um abalo que a fizesse querer a greve, tal como o adolescente espera ávido por uma plateia para a qual possa mostrar o drible que andou treinando. Governo e docentes têm razões e culpas.