Escrevo agora para acrescentar uma espécie de resposta ao
artigo "Trava na educação", publicado por Hélio Schwarstman na Folha de São Paulo, no dia 5 de
março, a respeito de reportagem do próprio jornal acerca da contratação, em
regime temporário, de professores que não acertaram nem a metade das questões
em teste seletivo.
Primeiramente, a noção de temporário, que regulamenta essas
contratações, refere-se à possibilidade de contrato anual, ou por curto período
de tempo. Os professores que constroem suas carreiras dentro desse regime não
são temporários. Os professores temporários que me deram aulas na década de 80
continuam atuando como tal, muitas vezes tão erradicados em uma escola que até
os demais não sabem dizer se o colega foi efetivado. Quando reprovam em algum
concurso, é normal que digam que isso não os abala. Mas basta uma medida, como
a que o governo do estado do Paraná tomou no final de 2012, mudando a
quantidade de aulas de certas disciplinas, para que esses professores entrem em
estado de greve, anunciada para a próxima semana. O enraizamento dos
temporários reprovados é algo tão orgânico dentro da rede pública que os
efetivos pensam mais nas aulas desses colegas que na importância, para o
ensino, de se aumentar a carga horária de matemática, em detrimento de educação
física, ou no comodismo de alguns quererem trabalhar em um único
estabelecimento. Como sempre, olimpíada de matemática é “encheção de saco”, mas
um torneio de futebol de salão a 100 quilômetros da escola faz a comunidade
escolar parar, encher ônibus, porque ainda é isso, sobretudo nas escolas do
interior, que garante a reeleição de diretores.
O temporário tem a imensa vantagem de escolher turmas e
escolas onde trabalhar. De poder desistir caso um aluno comece a dar problemas
sérios. E, como faltam professores efetivos, eles sabem que suas aulas estarão
garantidas. Para que estudar? Para que voltar a ganhar o que um professor efetivo
recebe no começo da carreira? Da mesma forma, para que um engajamento como
profissional da educação? Caso não haja mais aulas no interior, corre-se para a
capital.
As questões que Schwarstman suscita funcionam como uma
relação das causas que tornam esse profissional temporário um alívio para rede
de ensino que, caso ele não aceite as turmas, teria que deixar alunos sem aula.
Era assim quando eu estudava: semanas sem professores, e quem aceitava as aulas
normalmente não era formado na disciplina. Era comum ter uma aula e depois
saber que o professor se enganara de turma. Hoje, o governo até distribui essas
aulas antes do início do ano letivo. Mas as questões de Schwarstman acabam em
estabelecer uma circularidade entre a educação que esse profissional recebeu, e
que não o capacita a aceitar metade das questões em um teste seletivo, e a má
educação que ele oferece, com sua eterna ignorância em relação à própria
proposta curricular, com sua repulsa em aceitar conceitos científicos de
metodologia e avaliação, mas, sobretudo, porque é notória a limitação desses
profissionais em relação às suas disciplinas de atuação. Lembro os cartazes
feitos pelos alunos de um professor temporário, representando os orixás: todos
tinham as palavras “santo” ou “santa” antes do nome, evidenciando que o aluno
não compreendera do que o professor estivera falando, e tornou essa
incompreensão motivo de desinformação também para alunos de outros professores,
ao colocá-los expostos no refeitório. Nenhum trabalho de acompanhamento da
elaboração da atividade, nenhum trabalho de correção, nem de reorientação.
Encontrei entre coisas guardadas a série de atividades que
tenho disposto aqui em seguida, escaneadas. E elas são uma prova irrefutável do
despreparo de uma professora com contrato temporário. Coloca em dúvida também
os meios pelos quais essa professora chegou a assumir essas aulas. Afinal, o
que fica evidente é um caso de proteção, ou indicação, de uma professora porque
uma colega resolveu protegê-la, ou como troca de favores, porque a mesma é
parente de alunos da escola. Essa mesma situação do parente que assume aulas me
foi relatada, no ano passado, por uma professora do colégio em que as
atividades copiadas foram feitas. Ela me relata que, tendo assumido as aulas
que eram de uma professora temporária, sofreu as provocações de aluna parente
da afastada, que incitava os alunos a não realizarem atividades ou a ficar para
fora da sala, exigindo que a professora efetiva e concursada largasse suas
aulas.
Percebe-se, nas atividades aqui copiadas, um total
desconhecimento de qualquer noção de texto por parte da professora. Trata-se,
até onde sei, de uma dessas professoras que ministram aulas na rede municipal,
e que veem a rede estadual como um oásis de satisfação. A compreensão que a
professora demonstra acerca de metodologia e de avaliação não vai além daquilo
que ela deve ter estudado em um curso de magistério. É uma compreensão
esfacelada do conceito linguístico de texto e dos elementos que compõem a
textualidade. É fácil perceber que, durante as aulas que tratavam do assunto,
na faculdade, a professora já sonhava com as benesses da contratação que não
exige domínio sobre a disciplina. Certamente, ela apenas trouxe da rede
municipal uma série de incompreensões e uma ignorância crassa de conceitos
científicos. Mas é o que ela deve saber fazer.
Ela não sabe o que é texto. Não conhece a noção que
fundamenta todo o ensino de língua portuguesa, que é a de gênero textual. Não
sabe que todo texto está voltado para um leitor e que deve possuir uma
intencionalidade, como fenômeno social. Aqui, tem-se de volta o fenômeno da
professora que pede que o aluno escreva o que quiser sobre qualquer assunto.
Não há um gênero, não há uma intenção, nem uma estrutura. A linguagem dos
alunos oscila entre um discurso didático, de enciclopédia, um discurso
publicitário, que lembra as propagandas de rádio e seus chavões, e um
diletantismo típico do discurso de professoras primárias, que coloca a sua
moralidade até mesmo no que era para ser um verbete de enciclopédia.
Repare-se o absurdo do aluno que escreve sobre a cidade de
Faxinal, e não sabe sobre o que escreve; há ali um discurso de aluno de segundo
ano primário em um aluno de ensino médio. O acúmulo de frases que ele deve ter
escutado no rádio, em comícios, e que fazem parte de uma abordagem professoral,
de professora primária, paga pela prefeitura e de “rabo preso” com seus
pagadores, evidencia a mão da professora
sobre o discurso do aluno. O mesmo pode ser constatado no que uma aluna escreve
sobre o natal. Faz pensar em um discurso de propaganda divulgada por
autofalante, que a professora parece ratificar, vendo na mistura de linguagem
didática, publicitária e religiosa uma prova de criatividade e de riqueza
temática. A frase que inicia o texto
sobre o natal tem uma série de correções desnecessárias, afinal, a ausência do
verbo “é” pode ser vista apenas como opção. Logo em seguida, a professora
corrige o erro no uso do verbo comemorar com uma anotação mais errada ainda, pois
torna uma locução adverbial um sujeito. O fato de a aluna começar três
parágrafos com “todas”, em afirmações que são mentirosas, nem sequer mereceu da
professora uma anotaçãozinha. Frases assim, categóricas e que fazem
generalizações, são típicas do discurso de inúmeras professoras primárias, e o
aluno acaba terminando o ensino médio carregando essas marcas. A professora
coloca maiúsculas nos nomes de algumas cachoeiras, mas não em todas. Por quê?
Preferência pessoal? A presença do adjetivo antes do substantivo é uma marca da
linguagem professoral. Aqui, o aluno parece ter sofrido uma bela regressão no
tempo, que o fez voltar a ser o menino de oito anos com sua dicção específica.
Ele não sabe com certeza em que sílaba vai o acento do nome do seu estado. O
aluno que escreve sobre esportes está, evidentemente, pensando apenas nas suas
aulas de futebol de salão na quadra do próprio colégio. Ele chega a considerar
xadrez como esporte. E a insuportável presença da primeira pessoa, outra marca
do discurso professoral, que deve ter sido visto como qualidade.
Observa-se que a professora é generosa na hora de atribuir
notas a textos que, evidentemente, não o são, e que jamais poderiam ser aceitos
de alunos de ensino médio.
A possibilidade de escrever de qualquer jeito, pois a
professora não está pedindo ao aluno que reveja os erros que assinalou com
caneta vermelha, deixa este livre para não se preocupar nem com regras de
gênero textual, nem com ortografia, concordância ou pontuação. O que a
professora assinala são erros de ortografia, mas ela não está nem um pouco
preocupada em ensinar a produzir textos. Chega a ser risível alguns casos de
correções apenas para mostrar que ela é atenciosa, quando assinala que o aluno
deve introduzir um parágrafo, sem ao menos ter esclarecido o aluno acerca da
necessidade de definir seu tema, antes de falar sobre seus aspectos
secundários. O modo como ela assinala os erros de ortografia deixa claro que o
aluno não terá que relembrar princípios básicos de escrita, como a existência
de plurais. Ela anota, e dá a nota. Nenhum processo. Nenhum planejamento ou
revisão de texto. Ela não deve ter lido sequer o que as diretrizes curriculares
de português do Paraná falam sobre as etapas de produção de um texto. E que
seja texto.
Mas é também trágico perceber a falta de domínio da
professora sobre a própria língua. Ela não domina noções básicas de
concordância, como evidencia em “No terceiro e quarto verso” ou em “A palavra
destacada nas frases a seguir foram empregadas com o mesmo sentido do texto”. O
mesmo erro que força a aluna a cometer, ao colocar um verbo sendo regido por um
adjunto adverbial, é cometido por ela em “No verso: ‘Todas as coisas de que
falo são de carne/ como o verão e o salário’, possui uma metáfora.” Aqui, ela
demonstra possuir a mesma noção sobre o uso do verbo “ter”, em orações sem
sujeito, que um aluno de quinto ano. Sua pontuação é confusa. Para que os dois
pontos? Em “A palavra ‘coisa’ não tem uma definição específica, é usada de
foram (sic) genérica”, apenas um filho da professora, após uma longa conversa
de mãe para filho, entenderia o que ela quis dizer com “definição específica”,
sem se levar em conta que, no texto, a palavra usada é “coisas”. A falta de
critério, a pressa em digitar, nem sequer é compensada por uma revisão do que
foi escrito. Quando escreve que “A palavra ‘coisa’ é escrita com ‘s’, porque
depois de ditongo deve-se escrever ‘s’”, ele não explica por que “coice” ou
“peixe” não são escritas com “s”. Esperar que ela esclareça ao aluno que se
trata do som de “z” já seria esperar demais. A questão está lá, ela cumpriu sua
obrigação de fazer o teste e dar a nota. Esperar mais de tal professora seria
esperar demais. Como diria o discurso que representa o professor, ela não ganha
para isso.
Nenhum professor explicou a essa professora a diferença
entre preposição e artigo. Nem ela percebe sozinha. Por isso, ela anula a
hesitação do aluno, que colocou “E” e depois “C” diante da afirmação de que “O
artigo ‘a’ em “a prestar’ (2º quadrinho) é um adjunto adnominal”. Ela não sabe
que esse “a” é preposição e que preposição não é adjunto adnominal. Quem
trabalha com alunos de sexto ano sabe que o aluno acha que todo “a” é artigo. A
professora confirma a regra, mas ela já fez faculdade e, com certeza,
especialização. O fato de o aluno ainda hesitar e de ela ter certeza diante de
uma afirmação absurda podem significar que o aluno possua mais noções de língua
portuguesa que a professora. Esta usa a palavra “termo” de forma abusiva: “o
termo ‘nas notícias’”; “o termo ‘para cargo público’”; “o termo ‘descolar
algum’”; “o termo ‘a ele’” e evidencia não diferenciar singular de plural, como
quando diz “no verso” e reproduz dois versos. Algo tão primário que faz pensar
em limitações cognitivas, e não apenas em problemas de formação. Nenhuma
faculdade ensinará sobre singular e plural e nenhum teste seletivo perguntará
essa diferença. Se perguntasse, a taxa de acertos de alguns professores ficaria
menor.
As atitudes de improviso explícito, de falta de um foco
norteador, de a professora pinçar conceitos de forma quase aleatória para
formular seu teste, deixam claro que a postura da professora não diz respeito à
formação de habilidades. Ela cobra para dar uma nota. As notas não fazem
sentido, quando se pensa na série para a qual a atividade se destina. E o que
resulta é o aluno que não está passando por um processo de aprendizagem,
submetido aos critérios de uma professora que também não passou por um processo
assim. Schwarstman tem razão, o círculo existe. E antes que alguém possa pensar
que o exemplo isolado desta professora do Colégio Estadual Olavo Bilac, da
cidade de Faxinal, no Paraná, não ilustra a condição dos professores
temporários reprovados em testes seletivos, é preciso que se diga que o exemplo
foi extraído dentre inúmeros que poderiam figurar para se falar do problema.
Alguns, até já publiquei. Outros, posso encontrar aos montes se interpelar
qualquer aluno de escola pública.
Trata-se apenas de um exemplo. Em São Paulo, pode até ser
diferente. Afinal, o Paraná já não faz testes seletivos para contratação de
professores temporários faz tempo. A preocupação de que não saber metade das
respostas possa interferir na hora de escolher aulas não existe para os
professores temporários daqui. Por isso, eles podem até planejar suas greves para
poderem permanecer nas escolas em que atuam há décadas. Daqui a vinte anos, a professora aqui citada estará fazendo as mesmas atividades. E não será apenas porque não a prepararam. Será uma opção profissional porque, afinal de contas, ela se considerará uma vitoriosa em sua carreira.