A Rede Globo exibiu, no sábado
passado, a conhecida história da garota de programa que virou celebridade. Não
somente o filme, mas também uma entrevista com a própria. Existem obras menos
glamourosas, como filme Amores de rua,
ou entrevistas com menos cheiro de canção francesa, como a da fundadora da
organização DaVida, no programa Roda Viva, da TV Cultura.
Com ou sem glamour, era
impossível para um professor com minha carreira na rede pública não pensar nas
histórias cotidianas de minhas alunas. A exibição de um filme como esse deve
ter confirmado a muitas delas a certeza de que estão dando um rumo certo às
suas vidas. Afinal, trabalhei em escolas
onde alunas de quinta série abandonavam os estudos e iam residir no prostíbulo
da cidade vizinha, Borrazópolis, ou em colégio onde havia, no muro dos fundos,
buracos perfurados para que garotas o escalassem e não precisassem faltar aos
seus compromissos sexuais.
O fato de tais garotas da cidade
de Cruzmaltina, vizinha a Faxinal, onde eu residia, investirem tão pesadamente
em ações para o final de suas infâncias poderia parecer somente um problema
social, daqueles que se resolvem com dinheiro, auxílios do governo ou de alguma
igreja. Mas o problema não é apenas de natureza econômica. Aqui, as quengas
famintas e violentadas do Jorge Amado do romance de 30 encontram as dos anos
60, emancipadas, realizadas com sua condição. Meninas que saíram de sua
condição de criança para poderem caçoar, na sala de aula, da garota cujos pais
nem permitiam namorar. Meninas de 12 ou 13 anos que dispõem de um fumódromo
para elas, ali mesmo abaixo de onde o muro lhes dá passagem. Lembro-me de uma
que fumava na quadra, durante os torneios interclasses.
Existem os casos de miséria. Mas
ela nunca está sozinha. É sempre necessária uma vontade muito grande de sair do
contexto das meninas simples de cidadezinha. Falei da garota de quinta série
que, em 2000, atormentava as meninas com suas histórias de aventuras noturnas.
Um dia, ela não apareceu mais. Foi morar em um bordel, e não teria mais que
seus treze ou quatorze anos. Na mesma turma, estudava a irmã. Esta chegou a
concluir a oitava série. Mas, já no ensino médio, foi morar no mesmo lugar que
a irmã. Sitiantes abastadas, que moravam em um desses sítios cercados por
pomares e trigais. Estas eram da escola de Dinizópolis, distrito minúsculo, que
viu com indiferença suas meninas ganharem a rodovia e os bordéis da vizinhança.
Uma delas, certa tarde, eu vi dependurada em um orelhão, com uma garrafa de
cachaça. Minutos depois, apareceu um rapaz. Ele se sentou em um banco da
pracinha, e ela se ajoelhou, com a cabeça entre suas pernas. Passou por
sanatório, tomava remédios controlados. Como não era a única, passava
despercebida. Uma dessas garotas chamou a atenção quando passou a fazer uso
indiscreto de drogas. Então, ela já estava a galáxias de distância de voltar a
estudar. Não voltou.
Existe a história da garota
quase cega que era surpreendida, às vezes, às quatro da manhã, com homem no meio
do cafezal Apenas mais uma história para os membros do conselho tutelar
comentarem em bares e depois das missas. Nada que gerasse atitudes. E, para as
escolas, era apenas uma justificativa para que essas alunas fossem reprovadas
nos conselhos de classe finais. A atitude de “não prestar” funcionava para se
justificar o elevado índice de reprovação. E, evidentemente, intervir na vida
sexual ativa de suas meninas não era uma atitude vista como função da escola.
Moralmente falando, senhoras de família tinham que ignorar o assunto. Mesmo
aquelas pessoas do conselho tutelar que trabalhavam em escolas.
No colégio de Cruzmaltina, era
comum que os alunos que vinham à escola dissessem que uma colega não viera
porque “um cara” da cidade de Borrazópolis vinha buscá-la para fazer streap tease naquela cidade vizinha. Até
para eles ela já fizera, diziam. Mesmo a garota tendo treze anos. Acontecia
algo semelhante quando era preciso ir dar alguma aula lá à noite, e se via uma
aluna no trevo, esperando pela companhia. Na sala de aula, todos sabiam. Mas,
quando se chegava ao final do bimestre, a aluna tinha apenas presenças, o que
livrava a escola de ter que procurar uma intervenção do poder público. O fato
de haver fumódromo já indicava o quanto tais meninas eram beneficiadas pelos
favores da diretora em troca de sua eterna reeleição ou da eleição daqueles que
ela indicasse. Elas até podiam permanecer no pátio com suas conversas muito
pessoais e vícios, se não gostassem da aula. Ganhavam xampus, sabonetes.
Essa liberdade de ter uma vida
sexual ativa fazia com que as duas escolas primassem por casos frequentes de
garotas grávidas. Às vezes, apenas boatos. Certa vez, um aluno acusado de ser
pai do filho de uma delas (menina de sexta série, de treze anos) me disse que
elas gostavam de carro. “Basta o cara ter carro, que elas pegam no pé”, ele
dizia. Certa vez, uma delas sofreu um acidente em uma dessas saídas de carro. O
fato de a aluna ter ficado em coma desviou a atenção das causas do acidente
para as suas consequências. Orar por ela tornou-se mais relevante que
criticá-la. No círculo de amizades da menina, era comum que surgissem brigas
porque uma dissera ter visto os pelos genitais do namorado da outra. Fatos
corriqueiros, que se manifestavam, para a comunidade escolar, através da
insinuação de maturidade sexual, em danças sensuais em eventos escolares. Ser
contra tais ações significava ser retrógrado.
Certa vez, o fato de que os
alunos de uma oitava série dedicassem todo seu tempo a assuntos ligados à
sexualidade fez com que os professores boicotassem a formatura dos mesmos. A
turma gerara antipatia. Aos poucos, os professores foram vendo nas aulas
naquela sala apenas uma rotina sem futuro. Estudam-se as duas guerras mundiais,
mas não importa se a garota de quatorze anos aparecer grávida. “A gente faz a
nossa obrigação.” A vida da comunidade parecia separada da ação profissional
dos professores. Nenhum compromisso com uma educação para a solução de
problemas sociais ou de formação familiar. Tal como se esperava que as meninas
do Colégio Estadual Padre Gualter Farias Negrão fumassem lá no canto de onde a
fumaça não chegaria aos que comiam a merenda, esperava-se que as meninas da
Escola Estadual José Ferreira Diniz fizessem seus programas depois que o último
sinal batesse.
Nenhuma providência
de autoridades municipais. Nada que fizesse as pessoas do conselho tutelar
agirem no sentido de uma parceria com as escolas. Afinal, o problema não era
apenas econômico, mas de formação. O assunto era evitado nas escolas, de forma
que, certa vez, o núcleo de educação disse que, se havia tal problema, ele
deveria estar abordado até mesmo no regimento. Mas os regimentos só falam em
fanfarras e hortas. A vida fora da escola só existe nos documentos e nos
discursos oficiais, que dizem que a escola deve preparar o aluno para a vida,
por isso, torna-se também secundária a preocupação com conteúdos. A cidadania é
mais importante. Mas, tudo é discurso. Hoje, é possível encontrar em redes
socais postagens como esta, de uma aluna do colégio citado:
eu sou biscate gosto de dar a buceta prefiro um negao bem gostoso q ten
pau grande bjs
A exibição de dotes sexuais de
meninas é algo assimilado pela cidade e pelas escolas. De todas as classes
sociais. Nada vai mudar. A não ser que um filme, que mostre a vida sexual de
uma garota como uma fonte de prazer e de dinheiro, venha servir como um
incremento para aquilo que as garotas dali estão cansadas de saber. Na cabeça
de garotas de uma cidadezinha sem rodoviária, sem dentistas ou médicos, sem
biblioteca, a ação de uma garota de metrópole que sente prazer em ser uma
profissional do sexo e se chama de psicóloga pode servir como uma imensa
inspiração.