Por que não é possível falar-se em uma escola resiliente que
tenha construído aquelas competências essenciais que a sociedade espera do
ensino básico?
A escola que conseguiu afastar alunos de periferia, pobres,
do universo das drogas, da prostituição, do trabalho infantil, entre outros
problemas, investiu em projetos, normalmente trabalhados fora do turno escolar.
E que resultam em competências voltadas unicamente para o próprio projeto, mas
nunca para a vida posterior à educação básica. O aluno sabe dançar o fandango,
mas escreve “fandango” com J. Há alguns projetos voltados para o esporte que se
preocupam com competências formadoras. Muitos até investem em uma formação
musical. Mas a imensa maioria é apenas confete que a escola usa,
principalmente, para inserir professores novos no comércio das aulas
temporárias. O projeto já é feito pensando-se na disponibilidade daquela
professora que está em décimo na ordem de escolha de aulas (às vezes com ela
própria sentada à mesa do diretor), mas que vai ser a única da disciplina a
saber do leilão de aulas. Como sempre, a escola vai colocar um edital na parede
informando aos interessados sobre as aulas disponíveis. É uma medida para que
os nove primeiros da lista não recorram. Na hora do leilão, apenas o décimo
colocado estará lá, e constará na ata que nenhum outro compareceu, mesmo o
leilão tendo sido divulgado em edital.
Quando o governo do Paraná criou o projeto Viva Escola, os
colégios se encheram desses projetos. Lembro um deles, feito no Colégio Padre
Gualter Farias Negrão, a que apenas quatro alunos compareciam até o meio do
ano; depois, apenas dois. Era um projeto voltado para o esporte coletivo,
sobretudo o futebol de salão. Foi um imenso sucesso!
Existem projetos de efetivo sucesso. Certa vez, em 2009, um
homem fardado entrou em uma sala de sexta série, de forma quase truculenta,
para surpreender um menino que participava de um projeto promovido pela
prefeitura. Perguntou sobre sua disciplina, seu rendimento. Fez o aluno agir,
por minutos, como um soldado, usando termos como “senhor”, e depois, já fora da
sala, me explicou que precisava parecer truculento e até se desculpou. O aluno
teve bom desempenho durante o ano, fez da sua presença no projeto um motivo de
orgulho. Mas tinha todo um histórico de reprovações e atos de indisciplina.
Aquela turma foi a melhor que conheci na cidade de Faxinal, pelos casos de
mudança de atitude.
Existem notórios exemplos negativos. Como as fanfarras que
significam que o aluno vai permanecer fora da sala de aula durante os ensaios,
e vai receber em nota essas ausências. Fora os pontos que a escola lhe dará
pelo desfile em setembro. Por exemplo, o que vivi no Colégio Olavo Bilac, de
Faxinal, em 2008. Os alunos pertenciam à fanfarra com a intenção declarada de
não assistir às aulas. Ganhavam 2,0 pontos por ensaiarem; mais 2,0 pontos pelo
desfile do dia sete. Esses 4,0 pontos eram uma estratégia para que alunos
atingissem notas muito altas no último trimestre. E, evidentemente, em novembro
a escola inventava uma semana cultural valendo mais 2,0 pontos em todas as matérias.
6,0 pontos, a média do bimestre. Essas estratégias são vistas como um lance de
criatividade pelo núcleo de educação. Evidentemente, a escola tinha um índice
alto de aprovação. Mas era considerada a mais precária da cidade em
aproveitamento.
Já que falamos sobre isto, estendamos este assunto.
Em 2010, acabei pegando umas aulas em tal colégio, para
completar minha carga horária, mesmo meu padrão daquela disciplina sendo em
outra cidade e sendo o mais antigo de lá. Na reunião pedagógica de início de
ano, falava-se acerca do número de alunos com notas muito baixas no ano anterior,
o que tinha motivado aborrecimentos. E também sobre os malabarismos que tinham
sido feitos para que não se reprovasse muita gente. A professora de artes
propôs uma fórmula, que era quase a inversão da que expus no parágrafo
anterior. Todos os alunos começariam o ano já com 4,0 pontos, o que garantiria
que eles terminassem o primeiro trimestre sem notas baixas. Claro, a fórmula
representaria uma ampulheta letiva, já que no terceiro trimestre esses pontos
poderiam ser obtidos de outras formas, também sem relação com as disciplinas. O
professor poderia passar os primeiros meses letivos discutindo tranquilamente
sobre quem venceria o Big Brother, sem que o desinteresse do aluno pudesse
tirar seu sono. Nessas horas, a gente precisa ser enfático (e antipático): se a
proposta fosse aprovada, eu não a aplicaria, e procuraria ajuda. Imagine quanta
ingenuidade minha! Ajuda!
Eu estava escaldado do que vivera no mesmo colégio em 2008. Fora
a mesma situação: pegar duas turmas de português porque minhas aulas de inglês,
do padrão, tinham sido dadas a uma professora de outra disciplina, na cidade
vizinha. Eu era único professor do município com padrão em inglês. Mas não o
fixava em nenhum colégio porque amava trabalhar em uma escola pequena, com
apenas quatro turmas. Por isso, os professores que fixaram seus padrões, mesmo
de outras disciplinas, pegavam minhas aulas de inglês para completar suas
aulas. O que me deixava fora de uma escola onde trabalhara por doze anos e que
considerava um segundo lar. Portanto, eu peguei português em Faxinal para
completar o meu padrão de inglês. O Colégio Olavo Bilac tinha uma péssima
reputação e eu nunca tinha estado nele. Região de periferia. Mas o governo
tinha construído um colégio novo, com quase toda a estrutura das escolas mais
recentes. Limpo, sem carteiras quebradas, sem palavrões nas paredes. E a
diretora promovera toda uma política de premiar as turmas que cuidassem melhor
das suas salas.
Em outras escolas, diziam que eu poderia ser morto pelos
alunos de lá. Havia uma sétima série considerada péssima. E eles faziam justiça
a essa reputação. Foi preciso começar das habilidades mais básicas, como os
sons das letras. Eles eram indisciplinados. Uma aluna foi expulsa duas semanas
depois, e era a que eu considerava a melhor. Ao longo do ano, apareceram
marginais, um rapaz vindo de Curitiba, que os professores me alertaram sobre o
fato de o pai ser procurado pela polícia. A faca que o aluno mostrava não me
dava medo dele. Ele se mudou. Então, há poucos dias de encerrar o trimestre, a
turma permanecia com notas irrisórias. Eles se recusaram a ler o conto que eu
levara. Como se recusaram a reescrever suas produções de texto. A mesma
história de sempre: nunca tinham lido textos fora do livro didático, ninguém
devolvera textos para eles refazerem. E esperavam um milagre, na forma de
presente. O velho truque da prova com decoreba. Mas o milagre veio na forma de
proposta séria. Em uma quarta aula, às vésperas de entregar as notas, a turma
percebeu que eu não iria transigir com a recusa em seguir as práticas da
disciplina. Eu lhes propus um plano para, ainda, fazerem o que estavam se
recusando. Cheguei a propor ir ao colégio no contraturno para atendê-los. E
eles quiseram. Fui à minha casa, às pressas, e trouxe uma sacola com tudo que
eles tinham abandonado. A turma se ergueu, mostrou que era possível obter nota
através de práticas da disciplina, sem desviar para milagres, apenas a
responsabilidade de seguir as instruções do professor e chegar a um resultado:
habilidade. Os problemas foram se minimizando. Passei a amá-la. No último dia
de aula, em dezembro, colhi as plantas que cresciam debaixo da janela daquela
turma e plantei em meu quintal.
Mas havia uma oitava série. Com fama de ótima, de
inteligente, disciplinada, a melhor do colégio. Havia cabeças poderosas.
Poucas. Mas existia o mesmo problema da turma ao lado, agravado por uma reputação
que não representava o seu nível. Nunca tinham lido obra literária. Nunca
tinham feito um texto para ser corrigido, refeito, lido pelos colegas. Nunca
tinham lido nem produzido textos orais. Ler e escrever era algo tão próximo
daqueles alunos como a corrida de fórmula um no Japão, domingo. E eles tinham
tantas habilidades de escrita e leitura quanto possuíam para pilotar um dos
carros que correrão no Japão. Não foi possível, ao longo do ano, fazer com que
lessem nenhum texto. Montei para eles um apanhado de contos de autores
modernos, para serem lidos semanalmente. Não leram simplesmente porque não
queriam. O pai de um desses alunos quis me processar por exigir leitura. Em
relação à escrita, quando comecei a trabalhar os primeiros textos, havia algum
desempenho. Queria formar habilidades de pontuação, ortografia, concordância básica,
e a própria noção de texto. Fizeram contos, biografias, relatórios. Os
melhores, com muito interesse. Mas chegou o momento em que isso não bastava:
uma oitava série precisa produzir textos de opinião, artigos. Diante da
primeira atividade, a reação de algumas alunas foi taxativa: “A gente aqui só
sabe falar de sexo, professor.” Não era brincadeira: a aluna trazia a expressão
“sou biscate” ao lado do nome em sua página na internet. Engravidou. Juntamente
com outras colegas. A turma inteira passou a boicotar as aulas de produção de
texto. Uma aluna deixou de assistir às aulas da disciplina para não ter que ler
e escrever. A partir de setembro, ela só teve faltas. Hoje, é aluna do curso de
magistério. Em relação aos demais, a sala ficava vazia em todas as
segundas-feiras, nas duas primeiras aulas, porque quis dedicá-las à produção
oral. Como sempre, eles achavam uma coisa de outro planeta ter que fazer uma
apresentação oral. E quando lhes mostrei o currículo oficial do estado, e
questionei o fato de a turma não ter nunca lido nem produzido textos, e chegado
à oitava série assim, o fato gerou um escândalo movido pela turma. Professores
nunca mais falaram comigo. Pais vieram à escola saber por que eu estava
querendo que seus filhos escrevessem. E eu trabalhei durante três meses com
apenas seis alunos na sala. Como sempre, não havia nenhuma autoridade no
colégio que fizesse os alunos seguirem a proposta curricular, com aquilo que,
em qualquer proposta, é o conteúdo de português. A diretora estava em licença
para concorrer à câmara de vereadores. Disseram a essa turma que a lua é
planeta, e eu teria forçosamente que concordar. Não concordei. O sucesso da
turma ao lado era uma prova de que os da oitava queriam apenas manipular os
professores. Os alunos partiram para o curso de magistério, em número muito
grande. Nunca tinham lido um livro inteiro, um conto inteiro, ou feito textos
orais individuais, como seminários. Fizeram alguns textos orais, quando eram
coletivos. Quando precisaram produzir individualmente, fizeram birra, e
boicotaram as aulas. Hoje, estão quase com diplomas de professores nas mãos.
Terão que falar, terão que ler. Será que o farão?
A salvação desses alunos era, via de regra, os pontos obtidos
em atividades fora das aulas: desfile, fanfarra, torneios, danças. E uma semana
cultural quase sem atrativos. As outras escolas mandaram seus alunos para ver o
trabalho dos alunos do Colégio Olavo Bilac. O resultado foi uma imensa briga,
na qual a polícia precisou intervir, e acabou com ônibus apedrejados e pessoas
agredidas. Mas a nota estava lá. Esses alunos dependiam dela para poderem
boicotar aulas de leitura e produção de texto.
Em 2010, já não havia a estrutura de escola nova. As portas
continham buracos, feitos pelos chutes dos alunos. E esses chutes eram dados
por alunos que entravam atrasados nas aulas. Ilustrei este texto com a foto de
uma dessas portas. As lousas continham partes arrancadas. Garantia de que o professor
não passaria muito conteúdo. Na quadra, as tabelas para jogo de basquete já
tinham sido quebradas, da mesma forma a cerca de tela que impedia a bola de
sair para o pátio. Pilares postos no chão, a chutes e pontapés. No terreno ao
lado da quadra, evidências do uso de maconha. Falavam que ali era um ponto de
uso, à noite. Mas existe uma casa no pátio, onde mora um guarda. Segurança.
E a escola precisava urgente desses 4,0 pontos para todos os
alunos. As aulas deveriam acabar perto de meio-dia. Mas, quase onze-e-meia, os
alunos se recusavam a permanecer nas salas, porque queriam pegar a circular
desse horário, mesmo ela passando a cada dez minutos. Quando proibi essa
prática na minha aula, um aluno saiu e riscou meu carro. No mais, era a mais
absoluta recusa em fazer as atividades. Qualquer uma, até mesmo copiar da
lousa. Só o faziam, se o professor desse meio ponto para cada tópico copiado.
Não aceitei. A imensa maioria permaneceu sem sequer retirar cadernos das bolsas, falando palavrões. Não havia conteúdo que eles conhecessem, nem que quisessem conhecer. Nem vídeo, nem teatro. Queriam ganhar nota. Queriam sair antes da hora. Aliás, a pior aluna de uma turma tinha como nome o verbo querer. Os pais vinham exigir que eu
desse nota pela cópia da matéria da lousa. Cheguei a levar os cadernos ao
núcleo de educação, pedindo que alguém esclarecesse os alunos daquele colégio
sobre currículo, conteúdo, disciplina, horário. Não aconteceu, e eu consegui
mudar para outro colégio. Uma quinta série em Cruzmaltina, que conseguiu redigir textos médios em inglês com poucos meses de aula. Gente simples, da zona rural. Iluminados por uma boa educação familiar.
Os alunos daquela sétima antiga eu retomei, agora como
ensino médio. Outra vez, no dia em que precisavam ler uma obra literária, a
sala estava vazia. Foi preciso pedir intervenção do núcleo para explicar a eles
que leitura era parte do ensino de português. Alguns chegaram a bons
resultados. Entrariam facilmente em uma faculdade, passariam em concurso.
Quiseram ser alunos e não precisar de pontos artificiais. Hoje, integram um
projeto de sucesso do colégio, mesmo não precisando dele.
Os demais, esses patinam nas propostas antipedagógicas para
obtenção de notas. Tais propostas são para eles um meio de sobrevivência no
espaço escolar. Mesmo que isso represente depois a morte na sociedade, que quer
competências relacionadas ao ensino básico, e não a projetos feitos com
intenção duvidosa. Muito menos a inabilidade do aluno que conseguiu que a
professora trabalhasse tal como eles planejam durante suas conversas na
lanchonete. Ou sabem que, se todos cruzarem os braços, a escola vai lhes
presentear com pontos, muitos, quantos forem precisos.
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