A cópia abaixo reproduz umas páginas do livro de chamada de
uma professora que está há mais de dez anos trabalhando na mesma escola e nas
mesmas séries como PSS, ou seja, com contrato temporário.
Temporário. Breve. Pobres professores que não conseguem
responder às questões da sua disciplina que caem em concurso público. Eles não
podem sequer assumir dívidas, comprar aqueles carros novos que desfilam pelos estacionamentos
das escolas, porque podem perder suas aulas a qualquer momento, seus filhos
sugarão tetas murchas. Bem mais murchas que a que esses professores sugam do
estado.
Os meus professores com contrato temporário lá na década de
80 trabalham comigo, trinta anos depois, com contrato temporário. Os seus alunos
fazem os mesmos exercícios e os professores trazem para a sala os mesmos textos
daquela época. São os seus únicos conhecidos. Já eram há trinta anos. Há o
truque que eu vi há dois anos na lousa em uma sala de sexta série. “Escreva se
as frases são conotativas ou denotativas.” Para ser boazinha, a professora colocou
um C ou um D sob cada frase; seria uma forma de se dar uma pista e garantir
que, no final do trimestre, ela pudesse ser considerada um modelo de
eficiência.
A professora do livro de chamada copiado abaixo é um modelo
de eficiência assim. Fábula, fábula, fábula, seja para a quinta série, seja
para a oitava. Então ela pergunta o que representam a tartaruga e a lebre. O que
é fábula. E tudo acaba bem quanto termina bem, como na comédia de Shakespeare. São
carreiras inteiras como professores temporários. Antigamente, uns aninhos de
atividade e o professor era efetivado. Virava “fundão” e impedia que todos os
formados em uma época mais esclarecida conseguissem aulas. Evidentemente, havia
uma indústria de proteções a colegas e parentes. E, como estamos em um país
suspeito, é possível que houvesse trocas em dinheiro.
Na primeira vez em que assumi aulas de substituição, e foi a
única, pois eu já era aprovado em concurso antes de trabalhar, a pessoa que
distribuiu as aulas favoreceu uma pessoa que ainda hoje é professora
temporária, quase vinte anos depois. Ela fez com que eu pegasse aulas de
substituição, por um mês, quando havia aulas definitivas para serem distribuídas
dali a uma semana. Existia um concurso anterior para quem quisesse pegar aulas
como substituto, e eu fora o primeiro colocado, ficando na frente de quem
trabalhava havia séculos. Muitos nem eram formados nas disciplinas em que
atuavam. A atitude de quem distribuía aulas, pensando em beneficiar a colega,
foi mentir a respeito das regras. Eu peguei aulas como substituto e, nessa
condição, não poderia pegar aulas em definitivo. Quando aconteceu o leilão de
aulas definitivas, uma semana depois, eu era, de fato, o primeiro da lista. Mas
não pude pegar aulas porque elas foram dadas a uma colega da documentadora.
Veja-se a cópia:
A professora que fez o documento copiado está numa condição
assim. Seu livro de chamada é uma amostra exata daquilo tudo que o ensino de
língua portuguesa condena, desde a graduação, até os níveis mais elevados.
Basta entrar em uma papelaria e pegar um livro didático, folhear, e o que se verá
é o extremo oposto da ação dessa professora. Ou entrar em uma livraria e ler a
produção científica a respeito do ensino de línguas, muito além do interesse
comercial e parcial dos materiais didáticos. O que está lá também está nos currículos
oficiais do país e do estado, feitos por pessoas que não reprovariam em um
concurso docente, tal como eles são feitos. O que se tem procurado há décadas é
levar a ciência para dentro da sala de aula, e subjugar os chavões criados pelo
professor sem conhecimentos. Além do mais, o seu sistema de avalaçao fere o disposto no artigo 24 das Leis e Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que estabelece a maioria das notas para atividades que não sejam provas e testes. (Há cerca de uma mês, a chefe da ouvidoria do núcleo de Curitiba debochou das LDBEN, dizendo que era ela quem definia o que era legal.) Mas, quando se pega um caderno de aluno desses
professores, o susto é muito grande. Veja-se um resultado médio (a turma é
quase toda assim; há semianalfabetos; e uma única aluna com habilidades):
O trecho é de uma aluna de cerca de quinze anos, estudante
de uma sétima série do Colégio Estadual Nossa Senhora Aparecida, de Curitiba.
Percebe-se que não há aquilo que o currículo nacional chama de habilidades. A
aluna pode ter passado um bimestre estudando verbo, mas não sabe reconhecer o verbo
na oração que ela produz, nem sabe que ele deve concordar com o sujeito. Não
sabe que existe adequação da linguagem ao gênero, que é a base de toda
possibilidade de prática discursiva na disciplina de língua portuguesa. na lista de conteúdos da professora, estão lá os eternos assuntos (ortografia, crase) de gramática fora do uso, e o velho equívoco de achar que dissertação é gênero discursivo, mesmo os funcionários que dão capacitação já estando roucos de tanto dizerem aos professores para não cometerem esse absurdo. É achismo. A professra ensina o que ensinaram a ela. E a aluna demonstra não ter entendido sequer o que a professora queria quando falava em dissertação. E não dominar nada dos conteúdos dados, mesmo a nota dela sendo ótima, das melhores da turma.
Compare-se a proposta curricular do referido colégio, uma
série qualquer, aqui a sétima, e o conteúdo para a mesma série tal como está estabelecido na
proposta curricular oficial paranaense. Primeiro, a proposta do colégio:
Depois, a das diretrizes curriculares paranaenses:
GÊNEROS DISCURSIVOS
Para o trabalho das práticas de leitura, escrita,
oralidade e análise linguística serão adotados
como conteúdos básicos os gêneros discursivos
conforme suas esferas sociais de circulação.
Caberá ao professor fazer a seleção de gêneros,
nas diferentes esferas, de acordo com o Projeto
Político Pedagógico, com a Proposta Pedagógica
Curricular, com o Plano Trabalho Docente, ou
seja, em conformidade com as características da
escola e com o nível de complexidade adequado
a cada uma das séries.
*Vide relação dos gêneros ao final deste
documento
LEITURA
Conteúdo temático;
• Interlocutor;
• Intencionalidade do
texto;
• Aceitabilidade do texto;
• Informatividade;
• Situacionalidade;
• Intertextualidade;
• Vozes sociais presentes
no texto;
• Elementos composicionais
do gênero;
• Relação de causa e
consequência entre as
partes e elementos do texto;
• Marcas linguísticas:
coesão, coerência, função
das classes gramaticais no texto, pontuação,
recursos gráficos como aspas, travessão, negrito;
• Semântica:
- operadores argumentativos;
- ambiguidade;
- sentido conotativo e denotativo das palavras
no texto;
- expressões que denotam ironia e humor no
texto.
ESCRITA
• Conteúdo temático;
• Interlocutor;
• Intencionalidade do
texto;
• Informatividade;
• Situacionalidade;
• Intertextualidade;
• Vozes sociais presentes
no texto;
• Elementos composicionais
do gênero;
• Relação de causa e
consequência entre as
partes e elementos do texto;
• Marcas linguísticas:
coesão, coerência, função
das classes gramaticais no texto, pontuação,
recursos gráficos como aspas, travessão, negrito;
• Concordância verbal e
nominal;
• Papel sintático e
estilístico dos pronomes na
organização, retomadas e
sequenciação do texto;
• Semântica:
- operadores argumentativos;
- ambiguidade;
- significado das palavras;
- sentido conotativo e
denotativo;
- expressões que denotam
ironia e humor no texto.
ORALIDADE
• Conteúdo temático;
• Finalidade;
• Aceitabilidade do texto;
• Informatividade;
• Papel do locutor e
interlocutor;
• Elementos
extralinguísticos:
entonação, expressões facial,
corporal e gestual, pausas ...;
• Adequação do discurso ao
gênero;
• Turnos de fala;
• Variações linguísticas
(lexicais, semânticas,
prosódicas, entre outras);
• Marcas linguísticas:
coesão,
coerência, gírias, repetição;
• Elementos semânticos;
• Adequação da fala ao
contexto (uso de conectivos,
gírias, repetições, etc);
• Diferenças e semelhanças
entre o discurso oral e o escrito.
Não existe uma filiação. Nada. A proposta oficial se ampara em três práticas discursivas, e tudo que se estuda está embutido nelas: leitura, escrita e oralidade. A proposta do colégio é
apenas a cópia de itens de algum livro didático, que um ou dois professores
devem ter achado parecido com o livro que elas usavam quando eram alunos. São conteúdos de gramática pura, tal como eram estudados há trinta anos. Até mesmo a terminologia não é a mesma.
Professores espertos. Tal como não precisam se preparar para concursos para poderem ser funcionários públicos, não precisam conhecer as suas disciplinas para atuarem em sala de aula, nem mesmo a direção que as propostas curriculares dão à metodologia e à avaliação. Esse professor nunca percebeu e vai se aposentar sem saber que metodologia e avaliação não são etapas separadas, mas formam um processo de construção de habilidades. Os alunos vítimas desse sistema não possuem habilidades linguísticas, mas são aprovados sem que a escola os transforme. Nas outras disciplinas, não é diferente. Naquelas puramente teóricas, é ainda pior.
Professores espertos. Tal como não precisam se preparar para concursos para poderem ser funcionários públicos, não precisam conhecer as suas disciplinas para atuarem em sala de aula, nem mesmo a direção que as propostas curriculares dão à metodologia e à avaliação. Esse professor nunca percebeu e vai se aposentar sem saber que metodologia e avaliação não são etapas separadas, mas formam um processo de construção de habilidades. Os alunos vítimas desse sistema não possuem habilidades linguísticas, mas são aprovados sem que a escola os transforme. Nas outras disciplinas, não é diferente. Naquelas puramente teóricas, é ainda pior.
Esses professores são o sonho dos pais que não querem a
construção de competências e habilidades, mas apenas a aprovação. Aquela em que
o aluno não lembra, na série seguinte, o que se viu na anterior. Não lembra,
depois de fazer a sua prova, o que caiu nela. Esses professores seriam mantidos
a qualquer preço na escola. Manter as práticas escolares como eram há trinta anos é uma religião para esses professores. Ele faz voto de ignorar, banir da sua vida tudo que é científico e diga respeito a uma terminologia fora dos chavões. Não deixar que os currículos oficiais sejam aceitos e praticados por pais e alunos é sua razão de viver. O sistema quer esse professor lá, precisa dele, coloca-o em comissões, cargos, é na casa dele que o diretor toma suas cervejas.
Desde os anos noventa se fala em eliminar os professores
temporários, e os governos deram capacitações, fizeram concursos, mas eles
continuam ali, cada vez mais influentes. Debocham das capacitações, colocam apelidos nos documentos oficiais. "Semana pegajosa..." Não fazem capacitações docentes, nem
se preocupam com especializações, pois não possuem plano de carreira. Terminam
suas carreiras como as começaram, assim como o seu aluno não vai adquirir
habilidades definitivas, aquilo que nas propostas oficiais são os objetivos
principais de o aluno ir à escola durante cerca de uma década.
E quem acredita que não há uma indústria mantendo essa
condição, que envolva dinheiro, proteções políticas, compadrismo, instâncias
colegiadas, sindicatos, é um ingênuo. Já vi o caso de uma autoridade política retirar
a inscrição em concurso para cargo temporário de uma professora, para que sua
filha ocupasse a primeira colocação. Quem brigaria com vereador? Quem crê que
tudo acontece nos cargos temporários como se Aquiles não matasse Heitor é
porque tem se beneficiado com isso. O aluno irresponsável, o pai que não quer
aborrecimento, o professor que escolheu fazer uma licenciatura para nem sequer
pensar em um bacharelado. Certamente foram educados por uma professora como a
do livro de chamada acima.
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