Nem paranoia nem mistificação. Mas uma indústria de fabricação
de notas muito bem arquitetada. Indústria que traz, para a escola, índices
altos de aprovação, que aumentam o seu IDEB, mesmo que isso não represente
habilidades de ensino, nenhuma daquelas contidas no Manual da Prova Brasil.
Aliás, desconhecidas pelas pedagogas da escola e pela direção. Indústria que
traz, para os pais, a comodidade de poderem fazer, em suas casas, as atividades
escolares do filho, ou até mesmo de mandarem fazer, pois ele precisa do computador
para teclar com sua galera. Indústria que traz, para o aluno, a certeza de
poder passar as aulas trocando recadinhos de conteúdo fisioerótico, enquanto a
nota bimestral virá das mãos da mamãezinha (em casa) e das dez lacunas que
serão preenchidas em um ritual ostensivo de perfeita-idiotice (na escola).
Uma situação que exemplifica a existência dessa indústria
está no encarte que a Revista Veja de 12 de setembro de 2012 traz, e que tem
como assunto as tarefas de casa. O conteúdo está no site Educar para Crescer: http://educarparacrescer.abril.com.br/licao-de-casa/jogo-licao/
Tanto o encarte quanto a página eletrônica ilustram situações em que a tarefa
de casa pode se tornar uma aliada no crescimento do aluno, ou representar prejuízo
não apenas pedagógico como moral. O site traz a figura de uma criança entre a
mãe e o pai. Aquela escreve em uma folha, enquanto este pesquisa o conteúdo em
um livro. A criança apenas assiste à realização da tarefa pelos pais. A mesma
situação é tratada no encarte como regra:
Auxilie seu filho em caso de
dúvidas, mas sem responder por ele. Estimule-o a pensar e chegar à própria
conclusão.
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No entanto, tais atividades deixadas para o aluno fazer fora
da sala constituem uma indústria. No Colégio Victor do Amaral, em Curitiba, era
a sobrinha da vice-diretora que nunca, jamais, escrevia uma linha nas aulas,
mas suas atividades vinham forjadas no dia seguinte, até mesmo com a letra de
uma adulta. E as atividades pedidas não poderiam, sob nenhuma condição, serem
feitas fora das aulas. O que o colégio alegava era que as atividades sabidamente
feitas por outras pessoas eram uma tradição colegial, e davam suporte às notas,
diante do descaso do aluno com seus resultados. No entanto, ainda dependiam do
arbítrio do professor.
Um caso em que a transformação das tarefas em uma indústria
da nota ultrapassa o limite da moral e do racional para uma escola é a das
tarefas padronizadas da Escola Angelo Trevisan, que desconsideram até mesmo a
metodologia que o professor estuda na universidade. Como fazer com que uma
atitude típica do jeitinho brasileiro e da malandragem que está a um passo da
corrupção ativa pareça apenas a ação de um perfeito-idiota colocado em uma
situação de deliberar sobre o que consta no Projeto Político-Pedagógico?
Simplesmente dando a essas atividades nomes que parecem conter algo de
pedagógico, como “atividade diferenciada”, ou o ridículo caso dos “trabalhos
científicos”, que já começam violando o princípio básico da produção
científica, que é a de ser original. Nada além de cópias da internet, que o
aluno formata a partir de uma estrutura que ele nunca vai saber para que serve.
Se nem os autores da proposta sabem, enquanto a deliberaram durante um bingo
colegal ou chá de primavera. Paranoia? Não: essas atitudes são cuidadosamente
calculadas para que o professor evite ter que atribuir nota ao aluno e a seus
conhecimentos e habilidades e a atribua às tarefas, que não possuem atestado de
origem, mas que recebem nota pelo aluno imoral e sem habilidades. Mistificação?
Pode até ser, quando se diz ao aluno que é científico aquilo que está no lado
oposto à ciência, e que é avaliação algo que pedagogos (não os da referida
escola, lógico, mas cientistas, como Perrenoud e Afonso) dizem que não serve
para avaliar. Essa intenção de dar nomes bonitos para que o aluno acredite
estar no Colégio Marista ou no Bom Jesus mistifica conceitos, que aqueles pais
que estudaram em épocas em que as escolas brasileiras nem possuíam proposta
curricular acham o máximo. Dizem como crianças que chegam em casa depois de
verem um teatrinho com um ator vestido de Galinha Pintadinha e acreditam terem
conhecido a própria: “Lá na escola eles fazem trabalhos científicos todo
bimestre.” E o filho, descendo da condução: “Mãe, eu tirei 3,0 no trabalho
científico!”
Nada de incomum, não fosse o fato de que tal indústria (que
poderia ser apenas uma mãozinha para que escola, professores e alunos pudessem
terminar o bimestre com notas azuis e sem nenhuma preocupação de que isso
represente habilidade ou conhecimento) acaba por constituir o método Angelo Trevisan de levantar o IDEB
sem que nem a diretora, as pedagogas, ou os alunos saibam redigir uma simples
carta oficial. Esse método está no Regimento Escolar. Os pais amam esse
método mais que à própria formação moral ou intelectual dos filhos, e devem ter
sido péssimos estudantes, porque levam para fazer exames de altas habilidades
adolescentes que jamais saberão ler ou redigir um artigo.
Um exemplo claro da atitude de fazer as atividades para o
filho, de modo sistemático, está nos dois textos transcritos logo abaixo. O
primeiro é um bilhete enviado pela professora de Arte aos pais. O segundo, a resposta de uma mãe diante da
reclamação do professor de que até aquele momento (final de março) seu filho
não tinha uma única atividade feita.
A atitude da professora é correta. Mas deixa evidente que é
novata na escola. O que ela vê como um percalço no andamento da sua disciplina
(os pais fazerem atividades que o aluno deveria fazer na sala de aula, ele, o
aluno, para que se avaliasse este e não a tarefa entregue, que a diretora cola
na parede e elogia) é um método consagrado na referida escola, desenvolvido por
aqueles professores formados em condições não muito formadoras. Mudar essa
mentalidade seria possível, com alunos colocados sob uma condição formadora,
mas impossível com alunos já estragados por um sistema imoral e inócuo, como as
turmas de oitavo e nono ano da referida escola, que vão morrer acreditando que
aquilo que Perrenoud escreve não é científico, mas que os seus trabalhos são um
show de ciência. Da mesma forma, eles creem na veracidade da Galinha Pintadinha
vista no shopping. E pais e mães vão fazer escândalos para que suas filhas possam
copiar trabalhos do computador e possam gastar 90% das aulas sentadas na mesma
cadeira de um rapazinho qualquer. Que, aliás, vai copiar delas as tarefas.
Aqui, não há nenhuma preocupação com habilidades estéticas.
A aula de Arte vira apenas o ritual de pintar folhas de sulfite. E, mesmo
assim, é preciso pedir aos pais que não façam para seus filhos. O mesmo
acontece com produções de texto, traduções, leituras.
A atitude da mãe é mais assustadora, do ponto de vista da
moral e da pedagogia. Ela não demonstra nenhum desconforto ao dizer que copiou
as atividades do caderno de outra garota, atividades de produção e de
interpretação de textos, que o aluno ignorou, não copiando sequer os
enunciados. Ela chega a dizer que acabou de copiar as questões de compreensão de um
texto misto (um episódio de série de televisão). Ou seja, fazer a tarefa, sem nenhuma preocupação com os
resultados, é uma regra da comunidade escolar da Escola Angelo Trevisan. E a
própria mãe reconhece que o filho nem conseguiria copiar da colega de forma
satisfatória. Problema grave para um aluno de sexto ano. Novamente, percebe-se que mãe e filho acreditam na Galinha
Pintadinha que está no palco. O filho deverá ter nota, porque há umas
atividades no caderno. A mãe acredita que o que se avalia é uma tarefa entregue
e não o desempenho do aluno, através de um processo acompanhado diariamente,
através de conceitos e de fichas. As fichas de autoavaliação, propostas por
Jollibert e Calkins, aqui vão para o lixo. O conceito de metacognição, colocado
no currículo oficial do país, aqui serve para o pai arrotar as batatas fritas
que comeu com o filho, enquanto ambos assistiam às inúmeras Galinhas
Pintadinhas que a Escola Angelo Trevisan foi criando para si. Galinhas azuis,
irreais, mas nas quais a comunidade escolar crê mais que em toda a produção científica
sobre ensino-aprendizagem. Mais que nas propostas curriculares oficiais, feitas
por cientistas e técnicos.
O comportamento dessa mãe não é exceção. E praxe escolar,
que a diretora elogia e as pedagogas consideram um alívio. Há casos de produções de texto inteiras que evidenciam que saíram de um único autor, mas que as mães dos alunos que as obtiveram de forma imoral insistem em dizer que não, que são obras individuais. Mães de patricinhas que, elas próprias patrícias de salão, não sabem que existem métodos para se perceber a autoria de várias textos. Será que as patrícias um dia ouvirão dizer que existem formações discursivas? Ridículas, se ouvirem não entenderão, mas continuarão insistindo na própria obra, como as bruxas de Macbeth, com suas barbas e seus gritos.
Da mesma forma, é possível ouvir-se uma longa risada dessa
comunidade escolar embriagada de sua própria indústria de produção de notas,
diante da instrução que o encarte feito pelo Educar para Crescer preparou.
NÃO ATRAVESSE O PROFESSOR!
Não te
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A construção desse método imoral e inócuo de concessão de
notas provém da necessidade de acreditar que o filho não está em um colégio
particular, daqueles que cobram resultados, mas que a escola pública onde
estuda funciona como se fosse um daqueles. Criar tal ilusão, já que o filho
semianalfabeto não acompanharia o ritmo de escola particular conceituada. Lá,
teria que procurar uma escola de reforço; aqui, tem suas garatujas coladas em painéis,
mesmo que aquilo não corresponda a nenhum conceito científico. Escrevem “parabéns”
nas cópias que ele faz da internet. Cópias com dezenas de erros de ortografia e
pontuação. Então o professor que chega se espanta e acredita estar participando
de uma imensa pegadinha. Seus alunos de nono ano da rede particular escrevem
como alunos de nono ano. Os adolescentes da Escola Angelo Trevisan, como
ingênuas crianças que pintam o Coelhinho da Páscoa acreditando de fato nele, e
vão um dia entrar em uma grande escola sem ao menos dominarem o conceito de
gramática. Tal como seus pais, que não perceberam que o ensino deixou de se
preocupar com Galinhas e Coelhinhos para se entrar em um mundo de conceitos
científicos. No mundo de ingênuas mãezinhas emergentes, é mais fácil que elas
rasguem a ABNT do que reconhecerem que o trabalhinho que elas fizeram para o
filho não é científico, ou dizerem à professora de Artes que a pintura do
Cristo que elas destruíram acreditando saber pintar não passa de um borrão, do
qual todo mundo fora da escola vai tirar um imenso sarro.
As atividades feitas por esses pais são como a pintura que a
espanhola restaurou. Ridículas demonstrações grosseiras de imperícia. Que os
filhos acreditam que sejam El Greco ou Zurbarán. E a escola vai dizer que são,
e expor entre as demonstrações cabais da habilidade de seus alunos
premiadíssimos.
A indústria vai passar por interesse dos pais, por
engajamento da comunidade. Interesse por notas. Engajamento cujo único
interesse é matar a preocupação científica das propostas curriculares. E que
obrigaria a comunidade a produzir conhecimento. A madame acredita que o Romero
Brito que ela comprou no Supermercado Condor é autêntico, e o filho terá que
aceitá-lo. Fazer o quê? Quem nunca comeu melado não sente a menor necessidade
de comê-lo. Pessoas sobrevivem com muito pouco. Mas o perfeito-idiota acredita
que se banqueteia. A cena final do filme Estômago
deveria ter sido gravada naquela escola.
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