Como
é possível exigir das pessoas que elaboram regimentos e propostas curriculares
nas escolas um mínimo de conhecimento conceitual, se elas se dão o luxo de
desconhecerem as normas mais primárias da variante em que os escrevem?
Os
trechos abaixo são exemplos crassos:
(...)
foi autorizado a construção (...).
É
um momento em que o professor deve usar exclusivamente para práticas
relacionadas as suas atividades profissionais: correção de provas,
planejamento, elaboração de provas, atendimento de alunos e pais, entre outros.
A
cada caso que fuja da alçada do professor resolver em sala de aula, deverá ser
encaminhado, por escrito, à Equipe Pedagógica.
Fruto
de uma construção coletiva onde participaram direção, professores, funcionários
(...).
Não
há como negar que, temos alunos que chegam à escola sem a noção de limites e de
alguns valores fundamentais (...).
Os
atores envolvidos realmente demonstraram interesse, garra e motivação para
construir o nosso PPP. Quiseram, desde o início, constituir um documento nosso,
uma fonte de pesquisa e um norte para todas as nossas ações.
Como
subsídio, além do referencial bibliográfico, também serviram de apoio as versões
dos PPP’s anteriores.
Veiga
(2001) traz importantes contribuições sobre está temática (...).
Libâneo (2001, p. 125) aborda está temática ao destacar (...).
(...)
é importante termos presente quais ideais movem as pessoas (...).
Espera-se
ações docentes que visem o desenvolvimento intelectual (...).
É evidente a falta de habilidades de domínio da
variante padrão nas pessoas que escreveram os trechos acima. Mais que isso, é
possível perceber a pressa e o desarranjo que orientam a digitação dos mesmos.
O que se percebe aí é o aluno tradicional de escola pública resmungando por ter
que entregar uma pesquisa copiada de algum documento, e que faz aquilo com
pressa e desinteresse. Apenas para receber nota, o aluno; apenas para que uma
repartição qualquer afixe um carimbo, a escola.
Esse antigo aluno quase sem habilidades cita teóricos,
fala de leis, mas seria ingenuidade supor que ele compreenda o teor de tais
textos, se nem sequer percebe a relação dos predicativos com os sujeitos a que
se referem (“foi autorizado a construção”), no uso mais banal da língua
portuguesa. Nada de regência básica, mas deve ter feito provas sobre isso. Esse
antigo aluno ainda mantém em si os resquícios de uma variante inadequada ao
contexto (“demonstraram interesse, garra e motivação”). Nem passa pela cabeça
do pedagogo que no trecho existe uma gíria, e que ele está elaborando um
documento oficial. Esse mesmo antigo aluno de magistério, que certamente já deu
aulas para as séries iniciais, não percebe a relação entre o uso de acento e a
sílaba tônica da palavra (“aborda está temática”). No entanto, esse mesmo pedagogo acredita
que corrigir problemas de português é saber regras de ortografia.
Essa incompreensão de princípios de escrita
também se evidencia na incompreensão de princípios legais ou conceituais. Não
interessa a essas pessoas se os autores que elas citam na bibliografia de seus
textos têm um conceito de avaliação que está em desacordo com o que elas
escrevem, elas os usam apenas para conseguir a aprovação da autoridade. Logo em
seguida, negam os conceitos que defendem. Veja-se o que o Projeto
Político-pedagógico de um colégio de região nobre de
Curitiba afirma sobre avaliação:
Quanto à avaliação da aprendizagem, entendemos
que temos que buscar uma prática avaliativa que não tenha um fim em si mesma,
que não estabeleça como objetivo principal a classificação, a atribuição de
nota ao aluno, mas que seja um ponto de partida para a intervenção e
reformulação do processo de ensino. Conforme o disposto na Deliberação do CEE
nº 07/99 e em nosso Regimento Escolar, os professores utilizam instrumentos
diversificados, buscando valorizar a reflexão, a crítica, o estabelecimento de
relações entre os conteúdos trabalhados e não somente a memorização e repetição
da matéria estudada.
A ideia de uma avaliação como meio é evidente
entre quem escreve sobre educação. Percebe-se a colagem do que determina a
Deliberação 07/99, que nada mais é que uma aplicação do que determina a LDBEN
sobre o assunto. A diversidade de modos de avaliação, embora o termo
“instrumento” já signifique que a avaliação é algo passável, está afixada nas
leis, só que de um modo científico. Lá, essa ideia não tem a ingenuidade dos
docentes e dos pedagogos que a reduzem ao chavão prova, trabalho, atividade. No
texto da lei, avaliação se refere a modos científicos de se chegar a uma
aprendizagem significativa, e não apenas a uma nota. Trata-se de projetos,
produções dentro de gêneros definidos (não só na disciplina língua portuguesa).
Produzir conhecimento significativo.
O trecho citado acima é de uma das poucas
propostas curriculares, dentre as consultadas, que fazem referência às
diretrizes curriculares oficiais do estado e do país. Apenas para efeito
cosmético. Quando se atenta para o documento que orienta o sistema de avaliação
de um modo não mais científico e conceitual, mas unicamente regulamentar, o que
se percebe é a negação peremptória do que o documento escolar apregoa no trecho
citado acima. Não apenas sem referência no universo científico, mas inclusive
proibido pela mesma deliberação citada no documento:
Art.63 – Para a verificação da aprendizagem,
cada componente curricular deverá utilizar, em cada bimestre, instrumentos
diversificados onde:
I - as avaliações formais (provas e testes escritos) totalizem a nota 7,0 (sete vírgula zero) distribuída em no mínimo dois instrumentos no bimestre;
I - as avaliações formais (provas e testes escritos) totalizem a nota 7,0 (sete vírgula zero) distribuída em no mínimo dois instrumentos no bimestre;
II - as demais produções do aluno realizadas
com a orientação do professor como: pesquisas e trabalhos escritos,
apresentações individuais e/ou em grupo, produção de textos, relatórios e
outras atividades previstas no Plano de Trabalho Docente que tenham por
objetivo a sistematização da aprendizagem do aluno, diagnosticando o seu nível
de apropriação do conhecimento, totalizem a nota 3,0(três vírgula zero).
O artigo 24 da LDBEN é um dos documentos básicos que norteiam, com
o peso de lei federal, as possibilidades de um sistema de avaliação: “avaliação contínua e cumulativa do desempenho
do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e
dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais.” A
deliberação estadual sobre sistemas de avaliação tem o objetivo de divulgar,
para o professor paranaense, aquilo que a lei federal determina. Essa mesma
deliberação foi assunto dos programas de capacitação docente há cerca de dez
anos, e a escolas reformularam suas propostas para estarem adequadas. No
entanto, a proposta do colégio citada acima desconsidera a lei. De um modo
acintoso e exacerbado, pela certeza de que nenhuma autoridade a corrigirá. A
LDBEN deixa claro que o esforço da educação nacional deve se dirigir para a
superação do modelo quantitativo, algo também claro nas propostas paranaenses,
que aceitam a proposta nacional, “vista como mais adequada ao dia-a-dia da sala
de aula e como grande avanço em relação à avaliação tradicional, que se
restringe tão somente ao somativo ou classificatório.” A superação do
quantitativo é algo escarnecido pela proposta deste colégio. Na proposta de um outro colégio também tradicional, ela se
resume a uma incompreensão de sentido, típica da falta de habilidades de
leitura: “O sistema de avaliação é simples e objetivo, válido para todas as
disciplinas. A avaliação de cada bimestre terá valor 5,0. As atividades valem
2,0 pontos e o trabalho valerá 3,0 pontos.” Tal proposta poderia representar somente um problema de incompreensão do
sentido do que o artigo 24 dispõe, mas ela vai além. Ou seja, o fato de que a LDBEN proíba a
existência de provas e testes que valham a maioria da nota não significa que
elas possam valer a metade da mesma. O texto da lei fala em “prevalência”, e
não em igualdade de valores. Que uma prova bimestral valha 5,0 pontos é uma
estratégia para que o professor acomodado reduza seu sistema de avaliação ao
mínimo de registros possível. Mais do que apenas reduzir, a proposta a encaixa
em três menções. Mais do que isso, faz dessas menções apenas a confirmação
inapelável de que os autores dessas propostas não conhecem os autores citados
nas suas bibliografias, nem as leis nacionais. Parece motivo de riso que uma
proposta chame de “avaliação formal” aquilo que pedagogos como Celso
Vasconcellos e Júlio Furtado nem sequer chamam de avaliação, e que boa parte
deles chama de “avaliação entre aspas”, que faz pensar exatamente no pensamento
reducionista e sem base conceitual que levou o autor da proposta a usar tal
expressão para se referir à prova. Reducionista, manipuladora, contra a lei
federal. Sem base científica, feita para a década de 70, para a escola
tradicional e tecnicista da ditadura militar. A opinião sem fundamento dos
generais hoje é a opinião reducionista das pedagogas que nem aprenderam a
escrever. E passa a ser a visão unilateral do aluno, como o de outra escola, vizinha das demais aqui citadas, na qual o aluno só reconhece como
meios de avaliação aqueles que seu regimento determina. Nele, as atividades que
a LDBEN recomenda como “prevalência” apenas existem como uma mistificação
chamada de “atividade diferenciada”, que o aluno não vê como avaliação nem como
trabalho. Aqui, a influência de uma comunidade escolar mal informada gera as
aberrações sem valor conceitual.
Chama a atenção o uso infantiloide da palavra “trabalho” nessas
propostas. Faz pensar no aluno de ensino básico, que passou a chamar por esse
nome não a sua ação como aluno, diária, mas apenas alguma coisa a ser feita
fora do espaço escolar, normalmente cópia de alguma coisa, e que não representa
nenhum texto definido: não é resumo, nem relatório, nem resenha, mas essa cópia
garante ao aluno os pontos residuais que lhe farão chegar à nota, caso fracasse
nas risíveis “avaliações formais”, expressão que indica a falta de critérios ou
de uma “forma” na execução das demais tarefas. Grosso modo, querem dizer: “não
interessa quem fez, desde que o professor tenha isso em mãos para dar nota.”
Não são atividades processuais, desenvolvidas na rotina escolar, tal como a lei
apregoa.
Esse abandono das leis que orientam a avaliação, nas escolas
curitibanas, é uma atitude endossada pelas autoridades. Esse endosso garante
que uma proposta absurda, como a de se fazerem provas valendo 7,0 pontos, seja
aceita e praticada por um corpo docente composto por dezenas de professores.
Deve ser por isto que soa tão ridículo quando essas propostas apregoam ser o
resultado de um trabalho coletivo. Imoral, ilegal, escrita como se cada aluno
de ensino fundamental tivesse se sentado na cadeira da pedagoga, cada uma
dessas propostas é o resultado da visão distorcida que cada docente carrega
consigo, e que representa apenas um modo facilitador de se poupar o trabalho de
uma avaliação verdadeira, como está na lei e nos teóricos. Cada um deles a
escreveria com esse mesmo português de adolescente apressado dos trechos acima,
e que, na hora de dizer o que acha que deve ser mudado na escola, pede um
lanche mais barato. Querem a década de 70 (ou de 7,0) de volta, e não morrem se antes não o conseguirem.
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