Há uma semana, discutiam-se em Porto Alegre os rumos do
ensino de literatura infantil nas escolas. Um congresso reunindo pessoas de
vários países. Deve parecer estranho a pessoas de países como Argentina e
Portugal que não exista, no Brasil, um ensino de literatura organizado. Elas não
sabem que existem propostas sérias neste sentido.
No começo deste mês, conversando com um antigo aluno, que
mudou para Portugal, foi uma grata surpresa ver que ele sabe exatamente em que
canto de Os lusíadas existe uma
referência à cidade em que mora. Da mesma forma, outro ex-aluno, que migrou
para a França no começo de 2011, mesmo estudando em uma sala especial para
imigrantes, conhece nomes de autores
franceses e suas obras. É um aluno de sexta série.
No Brasil, existe a prática de não se trabalhar com a
literatura, mas apenas com fatos da história literária, resumidos em datas e
nomes. Pior que isso, os autores de que se fala são colocados na condição de
relevantes pela qualidade, e um livro notoriamente ruim, como A escrava Isaura, é focalizado como se
se tratasse de obra meritória. O professor não pede a leitura de livros assim
com a intenção de focalizar o fenômeno literário, mas apenas como uma obrigação
curricular. E o aluno sai da aula sem entender por que existe literatura no
currículo.
A literatura infantil segue passos semelhantes. Ela é vista
apenas como fruição, entretenimento que a criança pode trocar por um desenho
animado e ganhar em velocidade e quantidade de informação. A professora
primária, que não faz a menor ideia do que seja o fenômeno estético, incentiva
a leitura como um meio para se chegar a um fim pragmático: melhorar a
ortografia e, novamente, o incremento do senso crítico, que ela mesma não
possui.
As grandes autoridades no ensino de literatura infantil
lamentam que a escola ainda disponibilize obras como as da Série Vaga-lume, e
que autores como Marcos Rey e Maria José Dupré sejam vistos como leituras
recomendadas. Marisa Lajolo ainda fala com preocupação do atrelamento da
literatura a interesses de natureza moralizante. Um livro passa a ser visto
como bom porque focaliza assuntos relacionados ao universo escolar, como
cidadania, negritude, ou aos eternos mitos de uma cultura empolada. Regina
Zilbermann insiste no fato de a escola desatrelar a leitura da formação de
leitores proficientes, e lamenta que a escola recorra a fichas de resumos, a
quantidades de livros e a avaliações. A cultura brasileira do toma-lá-da-cá,
que se converte em sistema de avaliação, conforme afirmam as Diretrizes Curriculares Estaduais de Língua
Portuguesa, acaba fazendo da leitura mais uma obrigação que o aluno troca
por nota, sem nunca chegar a compreender de que se trata.
E, no entanto, as propostas curriculares em vigor procuram o
contrário dessas práticas. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais, escritos por pessoas que certamente leram Dante,
Cervantes, Joyce e Faulkner, entre outros, afirmam que a finalidade do ensino
de literatura é a formação estética. Formação que rompa com os modelos criados
pela indústria dos livros. Ou seja, essa proposta retoma preocupações da Escola
de Frankfurt, de filósofos como Adorno e Benjamin, que viam na produção de uma
arte industrial uma das grandes ameaças à formação integral da pessoa. Como
“produto espúrio do capitalismo”, para usar a expressão de um conhecido crítico,
existe o best-seller, que não
corresponde a nenhuma literatura, mas apenas aos produtos de uma indústria
cultural. A preocupação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais é formar pessoas que conheçam a Arte, e que saibam
diferenciar a obra de arte de valor das produções dessa indústria. A literatura
passa a ver vista em sua condição de Arte, não mais de história a ser decorada.
E o aluno deve ler obras de valor, para poder saber que os produtos dessa
indústria não podem ser vistos como elaborados por artistas. São produtos sem
valor estético.
As Diretrizes
Curriculares Estaduais do Paraná também fazem dessa formação de leitores
proficientes sua intenção norteadora. A literatura não é para ser vista como um
conjunto de fatos, nem deve ser cobrada como uma obrigação a ser cumprida. Os
autores da proposta sabem que os grandes escritores estão entre os maiores
homens que a humanidade produziu, e suas obras não precisam ser trocadas por
notas. A questão é tornar o aluno capaz de ver a grandeza da arte literária. E
ver, consequentemente, o que é medíocre como tal. Primeiramente, a proposta de
2006 adota a perspectiva rizomática como forma de abordagem dos textos
literários. Uma leitura deve induzir a outra, sem preocupação com uma visão
diacrônica. No entanto, essa perspectiva traz de volta o perigo de se fazer da
literatura um pretexto para se falar de novo sobre temas escolhidos a dedo,
como se a obra literária precisasse tratar de temas ou representar uma visão
politicamente correta. Matava-se a Arte em nome de coisas com as quais ela não
tem que se preocupar. A Arte é transgressora, não é serva de convenções
sociais. E a grande arte costuma causar escândalo e desconforto.
Em 2008, quando as Diretrizes
Curriculares Estaduais assumem as preocupações metodológicas da Estética da
Recepção, e faz de autores como Jauss e Iser os fundamentos de sua concepção de
literatura, houve o passo definitivo para que a escola paranaense pudesse
tratar a literatura como ela merece, sem concessões a ideais políticos ou a
modelos fracassados de avaliação. As obras devem ser abordadas como fenômeno
estético. Este fenômeno possui especificidades, e são elas que o professor de
literatura ensina: o que faz do texto literário uma obra de arte, como
interagir com cada obra, vendo nela algo único. Na definição de Iser, cada obra
é um jogo com regras próprias. A aceitação ou não dessas regras é que
possibilita a interação entre obra e leitor. Só a compreensão dessas
especificidades pode gerar o leitor-modelo, de que fala Umberto Eco. Conhecer
as regras de cada obra para poder jogar, como quer Iser.
Quando o Núcleo de Educação me pedia que desse capacitações
aos professores de Língua Portuguesa e Literatura, em eventos como o
NRE-Itinerante, a preocupação dos organizadores recaía sobre a falta de
conhecimento dos professores acerca da literatura em si. E isso era facilmente
constatável: o professor que dá aulas sobre Machado de Assis nunca leu Sterne;
não sabe que só existe Rosa porque antes existiu Joyce; da mesma forma, diante
de um filme para ser visto em seus efeitos estéticos, como Vidas secas, atenta apenas para o enredo, mas nunca para a fábula.
Usando os termos do formalismo russo, é preciso que
professores e alunos reconheçam que a arte literária visa ao efeito estético,
jogo com regras próprias, e que estas são a fábula. O enredo é simplesmente o
assunto, a narrativa. Esta não é o objetivo da literatura, como os ciprestes
não são o interesse da pintura de Van Gogh, mas o pretexto para sua
experimentação estética. O leitor-modelo atenta para a fábula; o leitor que não
sabe do que se trata o fenômeno estético atenta para o enredo e só.
Por isso, o lixo da indústria cultural contém enredo sem
fábula. Nenhuma elaboração estética, apenas as regras que o receptor conhece. O
best-seller é assim; o cinema
comercial; as pinturas compradas na loja de presentes. E é função da escola
formar o aluno para que ele diferencie uma coisa da outra. Seu gosto pode até
ser péssimo; mas seu juízo tem que fazer distinções objetivas.
Choca, é motivo de imensa indignação quando as escolas
insistem em permanecer na década de 70, e fazer da leitura apenas a fruição de
enredos que distraiam o leitor, ou que melhorem suas habilidades ortográficas.
Hoje, isto é incrementado por uma preocupação com a leitura que sirva como
pretexto para discussões ideológicas. O pior é quando tudo é agravado pelo
obscurecimento do que seja literatura, o que traz consigo o ato de esconder as
obras literárias. Em troca, o aluno tem diante de si o lixo da indústria
cultura, o kitsch em sua dimensão
mais espúria, pois necessita de engodos e mistificações para sobreviver. A
leitura de porcarias da produção editorial internacional, sem nenhum valor
estético, é vista como uma conquista por pessoas que nunca em sua vida se
aproximaram da literatura efetiva, ou souberam do que se trata. As escolas
trazem de volta a preocupação com a quantidade de livros, criam fichas de
avaliação, resumos, ou mistificações grosseiras.
Tenho aqui em minha frente dois cadernos de resumos feitos
por alunos da Escola Estadual Ângelo Trevisan, de Curitiba. Esses resumos
correspondem a um modo de a escola checar se o aluno leu o livro. Seguem um
formato que é, na verdade, uma tentativa de mistificar o gênero textual
resenha: dados técnicos, resumo, apreciação crítica. É risível ver alunos, em
pleno século XXI, depois de três propostas curriculares sérias, fazendo resumos
de livros técnicos sobre aves e dinossauros, daqueles que se compram em bancas
de revistas, e considerando-os como obras literárias. Mais que a incompreensão
do aluno, choca a incompreensão do professor, que exige em cada resumo uma
tipologia de personagens, como protagonista e antagonista, como se fossem
categorias literárias. Exclui da literatura o lírico, o ensaístico, a memória.
Autores como Italo Calvino e Borges. O aluno que leu um livro científico, mesmo
infantil, sobre dinossauros, coloca-se na obrigação de dizer quem são o
protagonista e o antagonista do que leu. Mais ainda, o aluno que não dispõe nem
sequer do conceito de literatura é colocado para julgar as obras. Ele não sabe
que o juízo contido em uma resenha é de valor, e não de gosto, um juízo
técnico, que exige preparo. Nunca possuirá esse juízo, pois a referida escola
esconde as obras literárias e disponibiliza aos alunos os produtos da indústria
cultural. Precisará criar essa condição fora da escola. O aluno vive cercado
por bruxos e dragões, mas nunca por obras literárias. O mais estranho é que não
se encontram obras como as que o governo federal incluiu em seus programas de
incentivo à leitura. Entra-se nas bibliotecas escolares em geral, e lá estão
centenas de volumes de inegável valor literário. Os textos que os entendidos
separaram para o aluno ler são obras literárias. O aluno encontra os clássicos,
e também os modernos. Pode ler desde a poesia de Cecília Meireles até a de
Manoel de Barros; desde os contos machadianos à dramaturgia de Ariano Suassuna.
Mas na biblioteca da Escola Ângelo Trevisan há apenas dois ou três volumes do
que é uma coleção com dezenas de títulos, vinte volumes para cada um. E que
preenchem bibliotecas inteiras. O que houve com esses livros? Em algum momento,
a escola os recebeu. Mas sumiu com eles. Talvez os tenha vendido para
reciclagem, a fim de pagar os caros e insultuosos volumes que agora completam a
sua biblioteca. O aluno não tem acesso aos volumes de literatura brasileira e
estrangeira, que às vezes até ficam escondidos atrás de coisas guardadas ao
acaso. Mas o acervo de blockboosters da
espúria indústria livreira é visto como uma conquista. Mesmo que todas as
diretrizes curriculares, feitas de 1990 para cá, condenem a leitura de tais
obras, e façam do objetivo da leitura de obras literárias o reconhecimento de
que esses volumes não possuem valor literário. Querem formar o gosto junto com
o juízo.
Triste ver que tais alunos não podem ter acesso à literatura
de qualidade, nem mesmo à literatura infantil que seja relevante. Triste pensar
no modo como uma autora como Lajolo descreve os procedimentos para que a
literatura infantil seja lida e apreciada nas escolas, diante de uma escola que
produz os resultados opostos àqueles dispostos como objetivos nos currículos
oficiais. Quando os comparo com os alunos, em escolas de interior, que liam
obras literárias reais, efetivas, com imenso prazer, é algo que faz lembrar as
escolas da década de 70. Seria preciso criar uma Comissão da Verdade para
escolas assim. Mas os alunos que liam obras literárias no interior tiravam
notas até 3,0 pontos acima da média nacional em exames como Prova Brasil e ENEM.
E eram notas que correspondiam ao que as diretrizes curriculares queriam para
eles.
A falsificação da natureza da literatura ofende a quem
conhece a arte literária. A Arte está acima da educação, como é evidente pela
leitura de O fictício e o imaginário,
de Iser. É a Arte que explica o real, mesmo nas sociedades sem ciência nem
religião. A escola brasileira falsifica aquilo que deveria explicar, apenas
para não ter o trabalho de fazê-lo. A literatura continua a mais relevante das
artes, não precisa da escola, surgiu antes dela e sobreviverá a ela. Já o
aluno...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.