Há 15 dias, a Secretaria de
Estado da Educação do Paraná realizou concurso público. Já virou rotina fazer
concursos, é um procedimento que não sai das pautas do sindicato. O que torna
esse procedimento peculiar é a rapidez com que os professores começam a se
mobilizar, pedindo o cancelamento do concurso. Na noite do domingo em que as
provas foram realizadas, já era possível ver em toda parte, sobretudo nas redes
sociais, conversas entre professores, à cata de argumentos para entrar na
página do concurso e pedir revisões, anulação de questões , cancelamento de provas
ou até de todo o processo.
A atitude correspondia ao
comportamento típico do estudante brasileiro: ganhar alguns pontos, mesmo que não
exista nenhum problema na prova ou nas questões. O esforço era para achar
motivos para que se pudessem pedir cancelamentos. Nenhuma atitude de revisão de
erros da prova, ou que se preocupasse com problemas conceituais. Tudo se
resumia em uma preocupação: o professor não soube fazer a prova, não acertou 12
de 20 questões, e estaria sujeito a perder as suas aulas, caso o governo
optasse pela contratação rápida dos aprovados. Diante dessa possibilidade, a
melhor medida era criticar a Pontifícia Universidade Católica, que organizou o
concurso. A instituição seria incompetente: as questões não estavam claras, as
provas continham conteúdos não listados no edital, haveria questões com mais de
uma alternativa correta ou sem nenhuma. Chamar os professores que elaboraram as
provas de incompetentes era a tônica. Eles sim, os professores que não
acertaram 60% das questões, é que seriam os modelos de competência na hora de
avaliar alunos. E em seguida vêm os chavões, como dizer que uma prova não
avalia os seus méritos como professor. Ou que o edital dizia que as questões
não poderiam conter ambiguidades. (Não ter entendido ou não conhecer o conteúdo
teria que ser falha na elaboração das provas, diante do dogma da infalibilidade
do professor brasileiro.)
Novamente, a circularidade fica
evidente: os professores são o espelho dos alunos que podem ser encontrados nas
escolas públicas. Daqueles pais que chegam ofendidos nas escolas, porque seus
filhos não souberam fazer uma atividade, e dizem que “nem eles” entenderam o
que era para fazer, e logo pedem cancelamentos, revisões, pensando unicamente
nos pontos que os filhos podem ganhar, mesmo à custa de ameaças, independente
da verdade ou não dos argumentos usados. O aluno que põe apelido no professor
pode ser visto nos comentários criticando a PUC. A educação mercenária,
preocupada com acúmulo de pontos, mesmo que isto não seja consequência de
estudo ou de aquisição de conhecimentos, ela pode ser vista no esforço desses
docentes.
Uma das evidências desse
espelhamento é a atitude de “toma-lá-dá-cá” com que eles encaram concursos como
esse. Trata-se de uma ação em tudo semelhante aos processos de avaliação usados
pelos docentes que atuam há décadas sem aprovação em concurso. E também
daqueles que, concursados, adotam o descompromisso destes como um paradigma,
uma forma de sobrevivência nas escolas públicas. Estuda-se apenas uma lista de
conteúdos. Estuda-se para a prova, unicamente. A intenção é a nota. Uma nota
que mal passa da metade do valor possível. A facilidade desse sistema para se
obter nota, sem aprendizagem, é eficiente, de maneira que a imensa maioria das
escolas burla o parágrafo 24 das Leis de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, que exige que a maioria das avaliações feitas seja processual e não
pontual e, caso a escola insista em provas, o valor delas deve ser inferior à
soma das atividades processuais. Não conheço nenhuma escola em Curitiba que
siga esta lei, basta acessar seus regimentos internos. Em alguns casos, existem
provas valendo 10,0, tudo sob a aprovação tácita do núcleo de educação, que
distorce a lei para que as escolas criem modelos próprios, mesmo quando estão
em desacordo com as leis federais. Claro, são professores, e pensam como seus
colegas. A hora do café é sempre mais importante que os cursos de capacitação
em que as leis são apresentadas. O sistema possibilita nota, e todos fingem que
existe uma construção de conhecimentos ou de habilidades. E o concurso foi um
pouco mais longe, ao exigir uma prova discursiva e uma redação. (Mas que seriam
exigidas só de quem acertou um certo número de questões. Para a prova de
conhecimentos gerais, o número nem chegava à metade.) Novidade, mérito de quem
elaborou o concurso. A avaliação da competência discursiva, oral e escrita, é
critério que toda universidade adota para selecionar seu corpo docente. Para os
professores da rede pública, é um abuso, pois exige competência, em vez de
apenas uma ou duas noites debruçados sobre apostilas.
O esforço para se manter o
paradigma faz com que tantos professores escrevam nessas páginas que as provas
continham conteúdos não previstos no edital. O abuso mais gritante desse
esforço é o dos professores de Língua Portuguesa e Literatura, que dizem que o
edital não trazia uma lista de obras da literatura brasileira a serem lidas. E
a prova trazia apenas trechos de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Alencar, ou
de poetas maiores, como Drummond. O fato de uma questão exigir que o professor
tivesse lido os romances maduros de Machado levou-os ao paroxismo de dizer que
o conteúdo “história da literatura brasileira”, incluído no edital, não se
refere à leitura das obras. Novamente, o imediatismo, como se fossem
vestibulandos procurando resumos na internet. Ou a falta de habilidade para a
leitura dos enunciados levava o professor a não perceber que, em algumas das
questões, todas as alternativas continham afirmações verdadeiras, mas que não
estavam no trecho que deveria ser lido. Algumas vezes, as alternativas falsas
continham afirmações absurdas, como a de localizar autores em séculos errados.
Era o que acontecia na prova de conhecimentos gerais.
Aliás, a prova de conhecimentos
didáticos e de legislação pode ser entendida como uma imensa piada, quando se
sabe que as informações contidas ali, relacionadas às leis em vigor, são jogadas
no lixo pelas escolas, os responsáveis pelos programas curriculares dizem que
tudo aquilo é besteira, e espalham um orgulho imenso em não respeitar o que, no
concurso, é considerado conhecimento obrigatório. Um contrassenso que os
professores tenham que saber aquilo que, nas escolas, eles se ocupam em
desrespeitar, fazendo piadas com nomes de teóricos que os concursos, via de
regra, colocam como norteadores da ação docente. Por isso, os concursos falam
de autores básicos, mas dos quais o professor só sabe porque caiu na prova. O
espelho das escolas, como sempre. O docente que construiu o fracasso da escola
pública, mostrando o fracasso de seu próprio aprendizado acadêmico. É o caso do
docente de História que diz que nunca ouviu falar do que aconteceu em Paris em
1968, simplesmente porque os livros didáticos não trazem a informação. Nenhum
conhecimento de mundo, nada que não esteja contido numa lista de resumos ou
numa apostila, a ser decorada dias antes da prova, para não dar tempo de ser
esquecido.
Alguns desses professores estão
na condição de temporários há mais de 20 anos. Perder aulas representaria um
problema, em tal momento da carreira. E a providência imediata, ao se sair da
sala de provas ou se olhar o gabarito, é reunir uma rodinha para um café
virtual nas redes sociais, e tentar impugnar o concurso, já que impugnar meia
dúzia de questões não resolveria o problema. Desta vez, o prato principal
servido pelos professores no sentido de uma indignação cidadã foi o atraso dos
professores que fizeram prova na PUC. Impedidos de fazerem a prova, ficaram
fazendo barulho nos corredores. Atitude de quem quer que o sindicato se
manifeste, e diga que a expressão “local das provas”, contida no edital, se
referia ao prédio, e não às salas de aula em que o professor deveria estar
antes do início da prova. Local, para alguns desses professores comentadores,
se referiria apenas a endereço, nunca a uma sala ou a uma cadeira com o nome
marcado. O mesmo pensamento, a mesma lógica usada pelos seus alunos e pelos
pais destes, quando entram com algum recurso. Mudar o sentido das palavras,
argumentar com sofismas. E o problema não é apenas de pontualidade; esse é o
docente que passa grande parte do ano letivo em joguinhos, gincanas, recessos,
festinhas.
Esses professores sem concurso
continuarão, na maioria das vezes, trabalhando na rede pública. A reprovação no
concurso ou não saber 60% das respostas não indicam, nesse caso, que o docente
esteja inapto. Ele continuará por décadas fazendo suas provas com respostas
decoradas, trabalhos que são cópias, e ignorará as leis em vigor. Leis podem
mudar. Mas o conhecimento científico que esses docentes reprovados demonstram
não possuir não é algo que possa ser posto em segundo plano. Mas é um dos
principais elementos que garantem a continuidade dessa circularidade. A ética
diante do próprio erro ou da própria inabilidade é a de fazer de conta que o
certo estava errado.
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