Em 2004,
a então diretora do Colégio Estadual Padre Gualter Farias Negrão, em Cruzmaltina,
Paraná, em uma atitude evidente de favorecimento, permitiu que uma aluna
cursasse o ensino médio sem precisar sair de casa. Os professores é que
deveriam providenciar todos os recursos para que a garota pudesse estudar
diante da sua televisão e comendo os seus bolos de milho.
Seria
ingenuidade acreditar que, em uma cidade grande, como Curitiba, diretores
favorecessem alunos em troca de pamonhas ou frangos caipiras. A atitude de
alunos que falam em pagar para passar de ano, que bastam alguns reais e eles
conseguem nota, é sintomática de que existem outros tipos de favores. No
interior, lembro que um aluno fraco alardeava que havia passado graças a um
presente dado a uma professora. Em uma cidade grande, esses presentes
certamente existem, para que alunos tenham tão entranhada em si uma cultura de
favorecimento.
As
diretrizes curriculares do estado condenam o sistema de “toma lá dá cá” que
ainda prevalece em sistemas de avaliação. Mas ele se refere, evidentemente, às
avaliações que não exigem um processo de acompanhamento do aluno, aquelas que o
paizinho pode fazer para o filho ou pagar para que profissionais façam. Até
mesmo, a simples atividade de decorar respostas ou colar trechos da internet.
Conheço professores que montam blogs de trabalhos escolares prontos, já
prevendo que as escolas jamais fariam algo diferente.
O
interesse com que diretores se apegam a modelos de avaliação condenados tantos
pelas leis federais, como as LDBEN, como pelas estaduais, como a deliberação
007/99, assim como condenados pela produção científica, é um sintoma claro de
que há mais coisas sob esse apego do que apenas ignorância.
Acreditar
que uma diretora que comete dezesseis erros de escrita em um bilhete de seis
linhas para pais de alunos compreenda essas leis ou essa literatura científica
é como esperar que o aluno de ensino médio compreenda a Crítica da razão pura. Afinal, não é idealismo o que tira esses
docentes da sala de aula e os coloca no comando de uma escola. Fora a
quantidade de pacotes de macarrão que ainda restam na cantina, nada parece
interessar a esses profissionais. A não ser, é claro, o número de reprovados.
Já que evasão, para eles, é problema do governo e não da escola.
A
preocupação com esse número de reprovados é um dos pilares dos mensalões
pedagógicos, que levam as escolas a adotarem modelos abjetos de avaliação.
Comparem-se:
O trecho
abaixo é das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, (capítulo II,
artigo 24, inciso V, item a):
V
– a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios:
a)
avaliação contínua e cumulativa do
desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os
quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas
finais(...).
O trecho seguinte é da Deliberação
007/99:
Art. 12 - O estabelecimento de
ensino deverá proporcionar recuperação de estudos, preferencialmente
concomitante ao período letivo, assegurando as condições pedagógicas definidas
no Artigo 1.º desta Deliberação.
Parágrafo Único - Entende-se por
período letivo a carga mínima anual de 800 horas distribuídas por um mínimo de
200 dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado às provas
finais.
O trecho seguinte foi extraído do
Regimento Interno de uma escola considerada modelo, de Curitiba (Modelo de
quê?):
Parágrafo Único - Seguem - se os seguintes critérios:
I. a avaliação deverá constar de:
a) provas
escritas, no valor máximo de 6,0 (seis vírgula zero) pontos;
b)
atividades avaliativas, no valor máximo de 4,0 (quatro vírgula zero) pontos.
Da mesma forma, o trecho seguinte:
Art.
98 A recuperação de estudos é direito dos
alunos, independentemente do nível de apropriação dos conhecimentos básicos.
Art. 99
A recuperação de estudos dar-se-á de forma permanente e concomitante
ao processo ensino e aprendizagem.
O
trecho seguinte foi extraído de um planejamento docente:
INSTRUMENTOS
DE AVALIAÇÃO
1ª Etapa:
- Duas avaliações
formais ( valor total: 6,0)
2ª Etapa:
- Atividades
diversificadas;
- Produções de textos;
- Leitura de obra literária indicada.
( valor total: 4,0)
3ª Etapa:
- Recuperação das avaliações formais ( valor: 6,0)
A recuperação é paralela
ao planejado, permitindo assim a real recuperação do aluno.
Qualquer aluno de ensino
fundamental que possua as habilidades de leitura adequadas à idade de fazer uma
Prova Brasil compreende, em uma leitura superficial, que os documentos da
escola estão em discrepância em relação às leis e à deliberação acima. As LDBEN
deixam evidente que o valor das atividades processuais deve ter “preponderância”
sobre o de “eventuais” provas finais. No regimento da escolinha amarelinha, que
cabe na mão do aluninho, o valor dessas provas, que não são processuais, chega
a 6,0. Ou seja, a escola inverteu a lei federal. Pode fazer isso? Quem conhece
a Constituição Federal sabe que não.
Ainda em relação a isso, as leis
e diretrizes deixam evidente que a prática de provas finais deve ser
abandonada:
Em
uma concepção tradicional, a avaliação da aprendizagem é vivenciada como o
processo de toma-lá-dá-cá. Ou seja, o aluno precisa devolver ao professor o que
dele recebeu e, de preferência, exatamente como recebeu.
No
entanto, a Lei n. 9394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), destaca
a chamada avaliação formativa (capítulo II, artigo 24, inciso V, item a: “avaliação
contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos
qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre
os de eventuais provas finais”), vista como mais adequada ao dia-a-dia da sala
de aula e como grande avanço em relação à avaliação tradicional, que se restringe
tão somente ao somativo ou classificatório.
A condenação de procedimentos de “toma
lá dá cá” ocupa inúmeras páginas das diretrizes de cada disciplina feitas pelo
estado. O trecho acima foi extraído das diretrizes de Língua Portuguesa. E toda
a produção científica sobre o assunto faz o mesmo, há pelo menos 70 anos.
Da mesma forma, aquele aluno que
sabe ler percebe que o regimento da escola copiou, na íntegra, a deliberação
estadual sobre recuperação. Mas que, no planejamento das professoras, o teor
dessa deliberação e das LDBEN é claramente negado. Ambas as instruções falam em
recuperação feita ao longo do período letivo, e que incide sobre a totalidade
da nota. O que consta nos documentos da escola é uma recuperação valendo 6,0
pontos, referente àquele valor das provas, que já é, por si, proibido pela lei.
A lei deixa claro que, na possibilidade de a escola realizar provas finais,
esse período não conta como dia letivo, nem as recuperações dessas provas. Mas,
em nenhum momento, a escola considera esses dias como não sendo letivos, o que
torna problemático o cumprimento da carga horária anual.
Sem dúvida, é uma estratégia de
favorecimento a toda a comunidade escolar. O processo de “toma lá dá cá”
possibilita a prevalência da quantidade sobre a qualidade e da paráfrase como
método de avaliação. (Aliás, a expressão “avaliação formal” é um sintoma
evidente de que estamos lidando com analfabetos pedagógicos.)
Seria ingenuidade acreditar que
essas leis sejam lidas ou conhecidas pelas pessoas que são pagas para impedirem
que escolas descumpram leis federais ou estaduais. O que vai desde a pedagoga (que
o governo paga para fazer enfeites de E.V.A., em todas as escolas, mesmo o
Conselho Nacional de Educação estabelecendo como sua função a adequação da
proposta pedagógica e das ações docentes, como se depreende aqui do trecho
extraído do planejamento, ao que a lei determina), aos órgãos responsáveis por
esse controle, como os Núcleos Regionais de Educação.
A insistência de todas as
autoridades envolvidas, sejam gestores, pedagogos, coordenadores de núcleo, em
dizer que eles fazem as suas próprias leis, é um sintoma claro de que há mais
coisas envolvidas nessa distorção que apenas a ignorância de quem não consegue
escrever um bilhete.
E, por falar em bilhete, segue
abaixo o começo de um, feito por uma aluna de oitavo ano, considerada de nível
excelente em sua escola. É o resultado de todo esse nosso sistema de
favorecimentos. Esses profissionais todos são, em relação aos seus cargos, o
que essa aluna é em relação às habilidades esperadas para sua série e idade.
Tal como eles, ela também precisou da proteção de gente mal intencionada para
chegar aonde está.
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